Um grave surto de influenza 102 anos antes da atual pandemia interrompeu a produção de filmes e vitimou atores: “Os pessimistas lamentaram que isto era o começo do fim“.
Deveria ter sido uma época feliz em Hollywood. A terrível Primeira Guerra Mundial estava prestes a terminar – em novembro de 1918 – e uma nascente indústria de filmes mudos estava prosperando, distribuindo filmes para mais de 20.000 cinemas por toda a América. De acordo com a publicação semanal Service, alguns diziam que, até 1918, a indústria do cinema logo seria a quinta maior do país, atrás da agricultura, carvão, aço e transporte, com um investimento estimado em cerca de US$ 250 milhões. Mas este rápido progresso foi ameaçado por um surto de influenza, uma pandemia que tiraria milhões de vidas em todo o mundo.
Assim como a Hollywood atual com a crise do COVID-19, estúdios e cinemas foram forçados a aceitar a ameaça aos negócios, e às vidas de seus funcionários, que o vírus representava. “A ‘filmilândia’ está cheia de brilho e germes“, relatou a publicação Moving Picture World em novembro de 1918. “Todos que você encontra têm uma cura diferente para a gripe…e mesmo assim, todos que você encontra ou sobreviveram à gripe, ou estão depressivos por causa dela“.
Durante meses, os estúdios e cinemas localizados em Los Angeles acreditavam que a chamada “gripe espanhola” era um problema da costa leste americana. “A situação em relação à influenza não é tão séria aqui como é no leste“, um representante disse à época ao Los Angeles Times. “Se as autoridades de saúde pedirem pelo fechamento dos cinemas, tenho certeza que os gerentes fariam qualquer coisa que as autoridades desejassem“.

Enfermeiras da Cruz Vermelha carregam um paciente em uma maca em Washington, DC, durante a pandemia.
Mas a gripe estava indo em direção ao oeste. No começo de outubro, a Associação Nacional da Indústria do Cinema, perdendo dinheiro porque os cinemas de todo os EUA estavam esvaziados, anunciou o embargo do lançamento de novos filmes pelo período de um mês, a começar do dia 14 de outubro. Donos de cinemas de Los Angeles, alguns dos quais já haviam começado a distribuição de máscaras de gaze, reagiram ao embargo com desprezo. O lendário empresário de cinemas, Sid Graumann, entretanto, disse ao Los Angeles Times, em tom de desdém, que ele tinha “muitos filmes na mão, que ninguém tinha dito uma palavra sobre fechamento dos cinemas e que ele não tinha ouvido um espirro sequer do público que compareceu aos seus cinemas“.
Em 11 de outubro, a Prefeitura de Los Angeles determinou que todos os cinemas, teatros e quaisquer outros lugares de entretenimento fechassem por tempo indeterminado. No total, 83 cinemas foram fechados, impedindo o comparecimento de milhares de frequentadores assíduos. “O jovem, que gosta de diversão, conseguiu ir ao teatro ou ao cinema?“, perguntou o Los Angeles Times. “A resposta é não. Quem tentou foi recebido por uma placa na qual se lia ‘fechado por ordem do comissário de saúde‘”.

Enfermeiras em Massachusetts providenciando ar fresco aos pacientes em 1918.
Os estúdios também tiveram que aceitar que fazer filmes era perigoso durante a pandemia. Uma notícia vinda de Nova Iorque confirmava que o famoso ator Bryant Washburn havia infectado a colega de elenco Anna Q. Nilsson enquanto gravava a comédia Vênus no Oriente. Em 16 de outubro, Frank Garbutt, vice-presidente e diretor da costa oeste da Lasky Photoplay Corp., anunciou que as filmagens de três filmes foram aceleradas e que a maioria do estúdio ficaria desativada por um mês. Os estúdios MGM, Mack Sennett e Triangle adotaram a mesma medida. Estrelas como Constance e Norma Talmadge concordaram em renunciar seus salários para que outros empregados do estúdio pudessem manter seus empregos.
Como disse Benjamin Hampton, produtor da era dos filmes mudos, o pânico se instalou quando os “estúdios, ainda empresas jovens, fecharam em definitivo ou passaram a operar parcialmente, e os pessimistas disseram que isto era o começo do fim”. Harold Lockwood, popular ídolo dos filmes da MGM, morreu de influenza em 19 de outubro, e a primeira estrela de cinema da Rússia, Vera Kholodnaya, também sucumbiria à gripe espanhola em 1919, na cidade ucraniana de Odessa, partindo os corações de milhões de fãs europeus.
Mesmo quando o poder da gripe se tornou dolorosamente evidente, alguns estúdios menores perceberam que fechar a produção, ainda que por um mês, era uma impossibilidade financeira. Em meados de outubro de 1918, Robert Brunton, da Brunton Studios, se uniu a outros estúdios menores incluindo a Kitty Gordon Film Company e a Helen Keller Film Company. Eles escreveram uma carta emocionada ao congressista da Califórnia H.Z. Osborne, pedindo cooperação para manter a indústria do cinema funcionando. “A maioria do trabalho feito pelos estúdios de cinema aqui é em áreas externas e é menos perigoso durante a pandemia do que qualquer outra indústria“, Brunton escreveu em nome do consórcio. Ele argumentou que se seus empregados não fossem pagos, eles não seriam capazes de manter os pagamentos dos Bônus da Liberdade (uma contribuição financeira para o exército, que estava em combate na Europa), portanto prejudicando o esforço de guerra.

As irmãs e atrizes Dorothy (sentada) e Lillian Gish. Ambas sobreviveram à gripe e aparecem aqui em Órfãs da Tempestade (1921).
Parece que parte da produção dos filmes foi retomada no fim de outubro, mesmo com a influenza devastando Los Angeles. Em 24 de outubro, o chefe de polícia da cidade publicou regras que proibiam cenas de aglomeração em filmes e que transeuntes se reunindo para acompanhar as filmagens deveriam ser dispersados. No começo de novembro, a super-estrela Lillian Gish foi acometida pela gripe enquanto trabalhava no Sunset Studio. Sua irmã e também atriz, Dorothy, seria infectada inclusive, assim como as atrizes Olive Thomas e a roteirista Frances Marion. (Um jovem Walt Disney também contrairia a gripe e sobreviveria) Lillian Gish faria pouco caso dos efeitos da doença depois, alegando que “a única coisa desagradável foi que isso me deixou em camisolas de flanela – tive de usá-las por todo o inverno – coisas horríveis“.
No final de novembro, o diretor Allan Dwan, que havia se recuperado da gripe há pouco tempo e ainda parecia doente, se gabou para um repórter da Motion Picture World, durante uma entrevista no Sunset Studios, do elenco que ele havia acabado de reunir para o longa Cheating Cheaters. O grupo incluía Jack Holt, Clara Kimball Young e a convalescente Anna Q. Nilsson. O repórter ficou chocado pelo diretor ter conseguido um elenco impressionante em uma época tão perigosa:
“’Onde,’ eu perguntei, ‘e como você os conseguiu?’
‘Gripe,’ said Dwan. ‘muitos estúdios estão fechados e como todos os atores preferem trabalhar do que não trabalhar, eu pude escolher um grande bando”.
De acordo com Richard Koszarski, autor de Flu Season: Moving Picture World Reports on Pandemic Influenza, 1918-1919 (“Temporada de Gripe: Matérias da Moving Picture World sobre a Pandemia de Influenza, 1918-1919“, em tradução livre), seguranças em alguns estúdios jogavam spray com desinfetante em cada visitante, enquanto algumas pessoas acreditavam que “um bolo fermentado por dia mantinha o vírus longe“.
Na Robert Brunton Studios, uma enfermeira da Cruz Vermelha espalhavam pós nos convidados, enquanto Thomas Ince deu máscaras a todos os seus empregados que “interferia em grande parte com a fumaça dos cigarros”. A Motion Picture World divulgou que “Mack Sennett equipou suas equipes com saquinhos de cânfora asafetida em pó e outros unguentos com cheiro adocicado. Os sacos são usados em volta e um pouco abaixo do pescoço e todos no lugar, incluindo Teffy, a cadela; Pepper, a gata e sete filhotes estão usando-os.
Cena da estação de trem do filme mudo Daddy-Long-Legs (1919), Mary Pickford espirra e todos se afastam, incluindo pessoas usando máscaras.
Embora muitos (incluindo as irmãs Gish) ainda estavam seriamente doentes ou logo adoeceriam (entre eles Mary Pickford, rainha indiscutível de Hollywood), o Los Angeles Times divulgou em 02 de dezembro que os cinemas da cidade, que alegavam ter perdido um milhão de dólares numa semana (US$ 17.1 milhões em valores atuais) durante as sete semanas de fechamento obrigatório, foram reabertos. A “temporada sem-graça” havia acabado e os moradores podiam “ficar assegurados de que os cinemas fizeram preparações para uma calorosa boas-vindas ao público. Seus gerentes escolheram os filmes mais vivos, mais revigorantes, mais espertos e os melhores para o nosso deleite!“.
No começo da primavera americana de 1919, a pandemia tinha desacelerado. Logo os estúdios estavam funcionando em total capacidade e as perdas temporárias sofridas por conta do surto de gripe foram amenizadas pela busca louca por entretenimento e por dinheiro dos anos 1920. A pandemia de gripe espanhola rapidamente se tornou uma nota de rodapé na história do cinema.
Matéria traduzida do Hollywood Reporter.
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