Hepburn travou uma batalha difícil e pessoal contra sua indústria.

Katharine Hepburn como Jo March, em “Little Women”
Quando se pensa em Katharine Hepburn agora, a imagem que provavelmente vem à mente é a de um ícone de Hollywood, uma mulher que estava à frente de seu tempo com uma atitude independente e uma propensão a usar roupas masculinas, uma atriz renomada e bem-sucedida. Porém, ela nem sempre foi vista dessa maneira.
Em meados da década de 1930, Hepburn era uma estrela em ascensão. Ela ganhou um Oscar em 1933 por Manhã de Glória e naquele mesmo ano estrelou a adaptação de Little Women (ou Quatro Irmãs como ficou conhecido no Brasil) dirigida por George Cukor. A partir daí, sua carreira começou a desmoronar. Depois de ser aclamada por todo mundo interpretando Jo March (papel que 85 anos depois renderia uma indicação de melhor atriz a Saoirse Ronan), Hepburn decidiu voltar a Broadway e para isso acontecer, precisava de uma permissão do seu estúdio – a RKO Pictures. Os chefes concordaram, com a condição de que antes ela deveria protagonizar o drama Mística, a atriz concordou e o filme foi lançado em 1934. As críticas foram péssimas e, segundo informações, Hepburn deixou uma foto de sua personagem em Mística pendurada em seu quarto durante toda a vida, para se lembrar de sempre manter a humildade. Já The Lake, a peça pela qual ela trocou Hollywood para participar, também foi um fracasso. Hepburn teve alguns altos e baixos nos filmes lançados nos anos seguintes, mas sua carreira, em grande parte, estava em declínio. Até Levada da Breca (foto abaixo), agora considerado um clássico do gênero “screwball comedy”, foi um fracasso nas bilheterias após seu lançamento em 1938, mesmo com boas críticas. O filme tinha tudo para ser um sucesso: além de ser puro “screwball comedy” (muito popular na época) era também estrelado pelo carismático Cary Grant, mas a antipatia do público por Hepburn fez o filme fracassar nas bilheterias.
Screwball Comedy foi um gênero muito popular na década de 1930. “É uma comédia sexual, sem o sexo”, como definiu o crítico Andrew Sarris. Outra característica desses filmes são as situações irreais nas quais os personagens se envolvem, como acontece em Levada da Breca, por exemplo, onde um paleontólogo (Grant) precisa lidar com as situações inusitadas envolvendo uma herdeira mimada que está interessada nele (Hepburn) e um leopardo chamado Baby.
Parte da luta de Hepburn para se conectar com o público estava ligada a sua imagem. Numa época em que a indústria estava sob as diretrizes morais do Código de Produção Cinematográfica (o famoso Código Hays) e com a pressão do público da era da Depressão para reafirmar valores tradicionais e lembrar a todos de uma época em que tudo era mais simples, não havia muito espaço em Hollywood para mulheres independentes e de personalidade forte como Hepburn.
Em 1938, ela foi declarada como “o ponto de interrogação mais confuso de Hollywood”, resultado do seu comportamento: em público era profundamente fechada e rude com a imprensa, mas gentil e generosa a portas fechadas. Quando ela tentou reivindicar o controle de sua carreira, foi vista como autoritária. Mesmo com a pressão para se adaptar aos papéis tradicionais das mulheres, ela usava calças masculinas, mantinha sua vida pessoal escondida do mundo e não se preocupava em casar e ter filhos. Por se recusar a revelar os detalhes de sua vida à imprensa, Hepburn foi apelidada de “Katharine of Arrogance” (Katharine da Arrogância, em tradução literal) e também foi chamada de “a mulher mais difamada de Hollywood” em um artigo de 1940 da Modern Screen.

Katharine e as suas calças. O público não gostava disso, não era “coisa de mulher”.
Esses problemas chegaram ao limite em maio de 1938, quando os proprietários independentes de cinema dos EUA divulgaram uma lista de atores e atrizes que eles acreditavam ser “box office poison” (ou “veneno de bilheteria”, termo em inglês usado para descrever artistas que afastam o público dos filmes). Eles afirmaram que estrelas como Hepburn, Greta Garbo e Joan Crawford eram um fardo para os estúdios porque recebiam altos salários, mas não tinham sorte nas bilheterias. Em resposta, a RKO ofereceu um filme B a Hepburn, e ela começou a receber ofertas salariais inferiores às que havia recebido no início de sua carreira.
Insatisfeita em deixar o termo “box office poison” definir o fim de sua carreira, Hepburn arregaçou as mangas. Ela comprou seu contrato da RKO e voltou para sua casa no estado americano de Connecticut. Lá, a atriz se encontrou com o dramaturgo Philip Barry. Ele havia escrito a peça da qual o último filme de Hepburn, Boêmio Encantador, foi adaptado e os dois eram amigos. Sua peça mais recente, Núpcias de um Escândalo, foi inspirada na socialite da vida real Helen Hope Montgomery Scott, mas Barry teve Hepburn em mente ao escrever a personagem fictícia de Tracy Lord. Núpcias de um Escândalo conta a história de Tracy, moradora rica de Main Line, subúrbio tradicional da Filadélfia. Na véspera de seu casamento com seu segundo marido, ela recebe uma visita do ex, C.K. Dexter Haven, de quem se divorciou dois anos antes por não cumprir os altos critérios que havia estabelecido para ele. Depois de tanto dedo no * e gritaria, Tracy se desilude com seu futuro marido, aceita seu ex de volta, com defeitos e tudo, e eles se casam novamente.
Hepburn assinou para protagonizar a peça e assumiu um risco ao concordar em receber uma porcentagem dos lucros em troca de um cachê. Com a ajuda do milionário Howard Hughes (retratado por Leonardo DiCaprio no longa O Aviador, de Martin Scorscese), com quem Hepburn já havia tido um relacionamento, ela também comprou os direitos de adaptação para o cinema por US$ 30.000 (algo em torno de US$ 550 mil em valores atuais). A peça foi um grande sucesso quando estreou na Broadway em 28 de março de 1939. Quando a produção foi encerrada um ano depois, havia arrecadado mais de US$ 1,5 milhão (cerca de 28 milhões de dólares hoje) e recebeu ótimas críticas.

Katharine e Cary Grant em Núpcias de um Escândalo
No outono americano de 1939, Hepburn começou a negociar com estúdios de Hollywood para adaptar a peça. Artigos do The Film Daily relataram que a Warner Brothers negociou em outubro de 1939 os direitos do filme por US$ 250.000. Porém, Hepburn acabou vendendo-os para a MGM por US$ 175.000 mil em janeiro de 1940. Além desse valor, Hepburn também recebeu US$ 75.000 como salário do estúdio. Ela provavelmente poderia ter recebido um adiantamento maior de outro estúdio, considerando o sucesso da peça, mas a MGM garantiu a Hepburn o que ela mais desejava: controle criativo.
Seu acordo com a MGM permitiu que ela selecionasse pessoalmente o diretor, o roteirista e o elenco. Ela escolheu George Cukor, com quem já havia trabalhado quatro vezes anteriormente, para dirigir e Donald Ogden Stewart para escrever a adaptação. Para os protagonistas masculinos, quando suas escolhas iniciais de Spencer Tracy e Clark Gable não estavam disponíveis, ela escolheu Cary Grant para o papel de C.K. Dexter Haven e James Stewart como Macaulay “Mike” Connor. Stewart interpreta um repórter que cobre o casamento e tem alguns momentos à vontade com Tracy antes que ela decida se reconciliar com Haven.

Mike Connor (James Stewart) se engraçando para cima de Tracy Lord (Katharine Hepburn)
Quando Núpcias de um Escândalo estreou em Nova York, em 26 de dezembro de 1940, foi recebido com elogios da crítica e sucesso comercial. Ao ser exibido no Radio City Music Hall, vendeu mais ingressos na primeira semana do que qualquer filme vendeu nos cinco anos anteriores no mesmo período. O filme foi lançado em todo o país em janeiro de 1941 e se tornou o segundo filme de maior bilheteria daquele ano. Ele recebeu seis indicações ao Oscar, incluindo uma de melhor atriz para Hepburn, e levou para casa os prêmios de melhor Roteiro Adaptado e melhor Ator Coadjuvante para James Stewart.
Mas a maior história de sucesso foi a de Katharine Hepburn, a mulher que fez tudo acontecer. Ela voltou a Hollywood em grande estilo e continuaria a fazer filmes pelas próximas cinco décadas. Ironicamente, a assertividade que alienou o público foi exatamente o que levou Hepburn a manter o controle criativo de seu projeto de retorno. Numa época em que muitas estrelas estavam à mercê dos estúdios (um regime conhecido como “Studio System”, no qual a produção de filmes era dominada por um número pequeno de estúdios), ela lucrou com a aquisição e a posterior venda dos direitos do projeto e selecionou pessoalmente o elenco e a equipe do filme.

Elenco em foto promocional de Núpcias de um Escândalo
Depois que o filme foi lançado, Harry Brandt, líder dos ‘Proprietários Independentes de Cinema da América’, a retirou da lista de “box office poison” e declarou: “Volte, Katie. Tudo está perdoado“. Por que exatamente Brandt sentiu que estava em posição de perdoar Hepburn e não o contrário não é claro, mas o sentimento foi, no entanto, bem-intencionado, e é uma prova de que ela mudou sua carreira com sucesso.
Já são quase 82 anos desde que Katharine Hepburn fora declarada “veneno de bilheteria” por causa de filmes malsucedidos, que ela havia feito sob contratos de estúdio, e por causa de sua personalidade obstinada, que o público percebia como arrogância. Hoje, o sistema de estúdio dos anos 40 não existe mais, e as atrizes geralmente não são julgadas com tanta severidade quanto Hepburn foi por não querer se casar e ter filhos.

Katharine, como Sylvia Scarlett, de Vivendo em Dúvida (1935)
No antigo “Studio System”, ou sistema dos estúdios, apenas os grandes estúdios de Hollywood tinham condições de produzir e distribuir filmes. Os longas independentes só vão surgir nos anos 50 nos EUA, que é justamente o período em que o tal sistema de estúdios inicia a sua decadência. Nessa época, os contratos entre artistas e estúdios funcionavam como contratos com emissoras de TV no Brasil, nos quais os artistas eram contratados por um período definido pelos estúdios, que tomavam todas as decisões criativas. Quando Katharine comprou os direitos de adaptação para o cinema da peça Núpcias de um Escândalo e os vendeu para a MGM em troca de uma boa grana e controle criativo, ela fez algo raro para a época, afinal obter liberdade criativa era algo que até mesmo pouquíssimos artistas homens alcançavam. Apenas gente bastante consagrada (geralmente homem) conseguia tomar 100% das rédeas criativas de um projeto naqueles tempos, mas nem o fato de ter perdido o seu prestígio em Hollywood, nem o fato de ser mulher, intimidaram Katharine Hepburn.
Ela soube se manter relevante no meio artístico quando a velhice chegou, ganhou mais três Oscars depois da sua volta a Hollywood. Ao todo foi indicada 12 vezes ao prêmio e ganhou em 4 ocasiões: o primeiro como Eva Lovelace em Manhã de Glória (1933); o segundo como Christina Drayton, de Adivinha Quem vem para o Jantar? (1967), ocasião em que dividiu o prêmio de melhor atriz com Barbra Streisend; o terceiro prêmio ela ganhou por O Leão no Inverno (1968), como Eleanor de Aquitaine; e o quarto foi por Num Lago Dourado (1981), como Ethel Thayne. Foi a atriz que mais ganhou Oscars. Hepburn morreu em 2003, aos 96 anos.

Katharine Hepburn, Cary Grant, James Stewart e John Howard. Núpcias de um Escândalo (1940).
Este artigo foi cortesia dos sites Films School Rejected e Vanity Fair.
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