Com cara de underground, e jeito de minissérie, a fase regular da Liga da Justiça escrita por Scott Snyder é um deleite para leitores fãs de Lovecraft

Imagine viver em um mundo com a ameaça de um ataque alienígena, ou de super-vilões começarem uma onda de destruição na sua cidade. Essa é somente mais uma quarta-feira dentro do universo da DC Comics.
Mas será que nesse universo, existem forças primordiais que transcendem todos os conceitos humanos estabelecidos nas páginas de quadrinhos, que estremecem até mesmo o Superman?
Se elas forem despertadas, os heróis poderão combatê-las? E acima de tudo: como eles se comportarão depois?
Essas e muitas outras perguntas são respondidas na Liga da Justiça do Scott Snyder. Apesar do mesmo sobrenome, não tem nada a ver com o Zack Snyder.
Onde começa essa história?
Apesar da numeração dessa fase da equipe iniciar do zero , ela começa bem antes em algumas sagas e minisséries que reestruturam todo o universo DC. Vamos à elas:
Noite de Trevas: Metal (2018)
Nesta saga de caráter altamente duvidoso, vemos o Multiverso Sombrio, liderados pelo Batman Que Ri, entrarem em guerra com a realidade “normal” para tomar o controle da Terra. Ao mesmo tempo, o Homem-Morcego tenta desvendar um mistério cósmico para impedir esse cenário aterrador.
De toda essa zona, que não faz questão de ter sentido cronológico dentro da própria história, o resultado é o rompimento da Muralha da Fonte, que reestrutura as regras cósmicas do universo DC.
Ele tem o roteiro escrito pelo Scott Snyder e desenhos de Greg Capullo, que são a mesma equipe da fase dos novos 52 do Batman.
Liga da Justiça – Sem Justiça (2018)

Diferente da história anterior, a minissérie possui somente quatro edições, sendo narrativamente mais contida. Após uma derrota absoluta por Brainiac, a Liga da Justiça é rearranjada em novas equipes pelo próprio vilão para salvar seu planeta natal de alguns seres cósmicos conhecidos como: Mistério, Maravilha, Sabedoria e Entropia.
A minissérie possui o roteiro de Scott Snyder, James Tynion IV e Joshua Williamson, com desenhos de Francis Manapul.
Depois de uma série de eventos, e algumas revelações incômodas, a narrativa principal do universo DC é introduzida a um cenário totalmente novo: o Horror Cósmico.
O que é Horror Cósmico ou Cosmicismo?

Mas para que possamos continuar, é necessário uma breve introdução do que é o Horror Cósmico.
Se você não está habituado ao termo, os traços de origem desse subgênero remetem até meados do século XIX em contos de Edgar Allan Poe. Dentre eles: “Sombra – Uma Parábola” de 1835, e “Conversa de Eiros e Charmion” de 1839.
Porém, ele veio a ganhar mais espaço, e os pilares que o tornaria um gênero clássico no início do século XX, através das obras do controverso H.P. Lovecraft.
O Horror Cósmico tem como base o medo do desconhecido, ou então de criaturas completamente abstratas e além da concepção humana de horror.
Mas além disso, o cosmicismo se baseia na ciência, e no quanto a humanidade ainda não sabe sobre os mistérios do universo.
Apesar das entidades apresentadas de forma totalmente antropomorfizadas na Liga da Justiça, ele ainda possui um poder que transcende a noção humanamente possível.
Será que podemos falar da Liga da Justiça agora?

Devidamente apresentados para os conceitos de horror cósmico, vemos as bases desse subgênero nessas aventuras da Liga da Justiça. Escritas habilmente por Scott Snyder e James Tynion IV, ele é moldado especificamente para o mundo dos super-heróis.
Esses autores são conhecidos por suas ideias ousadas, que rompem com muitos esteriótipos nos quadrinhos. Trabalhando na principal equipa da editora, eles fazem as principais ameaças da equipe transcenderem suas noções de poderes conhecidas.
Okay, idéia batida. Até porque vocês devem estar se perguntando: “Mas isso também não foi mostrado em 1986 em Crise nas Infinitas Terras, e em outras sagas?”. É aí que entra o “pulo do gato”.
Snyder e Tynion IV tecem com muito cuidado a linha tênue entre o poder, e o desconhecido nessa nova empreitada, e como eles lidam com esse cenário totalmente novo para eles.
Isso fica claro através das motivaçãos dos vilões e dos heróis, e principalmente como eles lidam com as consequências de seus atos para deter, ou até mesmo ajudar, essas entidades.
O renascimento da Legião do Mal

Os vilões principais dessa fase são liderados por Lex Luthor, que desiste da sua jornada de redenção. Ao derrotarem a entidade Entropia, na minissérie Sem Justiça, Lex Luthor se depara com uma revelação perturbadora.
Ele descobre que a humanidade tem como natureza primordial a entropia, logo, todas as pessoas do mundo são moldadas para serem más. A bondade e a justiça, são conceitos ilusórios feitos para impedir os seres humanos de confrontarem seu verdadeiro potencial.
Se parece difícil de entender, é proposital. A partir desse plot, Luthor vai atrás de grandes vilões do Universo DC para conquistarem as forças primordiais do universo, e também do Multiverso para controlá-las, e mostrarem para os heróis que o conceito de justiça deles é somente algo abstrato, sem nenhuma base na realidade em si.
Este é um conceito importante, porque ao colocar isso como verdade absoluta, temos um novo campo para trabalhar.
Um cenário onde a Liga da Justiça pode ser a vilã da história ao fazer o bem, indo claramente contra a lógica estabelecida em anos de cronologia dos quadrinhos.
A nova Liga da Justiça

Os heróis por sua vez, ao se depararem com essa nova realidade, começam a ponderar sobre seu papel dentro do desenho cósmico das coisas. Para definir essa jornada, tanto visualmente, quanto narrativamente, é usada uma busca por relíquias e conhecimentos centrados em torno de algo conhecido como Totalidade.
Ela pode ser a chave para consertar a Muralha da Fonte, e reescrever novamente as regras do universo segundo as vontades do portador. Não é preciso dizer que a Legião do Mal também está atrás desse poder incomensurável, que convenientemente acaba caindo da Terra, para variar.
Entretanto, a edição em que somos apresentados ao conceito da Totalidade, tem uma clara inspiração no filme Aniquilação, de 2018, que por sua vez, é inspirado em um conto de H.P. Lovecraft lançado em setembro de 1927, na extinta Amazing Stories: A Cor que Caiu do Espaço.
Dentro dessa história, podemos ver uma entidade que começa a irradiar uma espécie de poder que remodela toda a realidade à sua volta, até mesmo o DNA. Ela aparece logo na segunda edição dessa nova fase, ditando todo o tom do que viria a seguir.
Os personagens centrais
Um ponto interessante para se abordar, é que existem poucos escritores que conseguem escrever histórias onde entendem a dinâmica da equipe. Bom, Scott Snyder, por incrível que pareça, é um deles.
Dentro das edições, vemos uma amizade sincera e respeitosa entre os integrantes, que entendem o papel de cada um. Até mesmo a interação entre o Superman e o Batman é muito gostosa de se ler (coisa difícil de vermos ultimamente).
Entre os vilões não é diferente, ao intercalar as edições focando também nos antagonistas, conseguem aprofundar em suas motivações, e em como eles realmente são, além de como lidam com essas diferenças.
Isso mostra como o Snyder consegue criar uma atmosfera completamente única para os personagens, e ainda se preocupar com os comportamentos de cada um, respeitando sua essência individual.
Mas é bom?

Contrariando minhas noções pessoais, a Liga da Justiça do Scott Snyder é uma obra que consegue unificar o horror cósmico, simplificando-a para leitores leigos. Mas conserva sua essência, dentro de uma de história de super-heróis.
Além disso ela subverte muitas regras estabelecidas pelos super-heróis. A narrativa os humaniza ao faze-los se deparar com um poder, que nem mesmo eles, com tantos dons a sua disposição, podem compreender totalmente.
Portanto, Liga da Justiça do Scott Snyder é uma obra realmente notável, que vai além das expectativas, e consegue entregar uma das melhores fases da equipe dentro de uma mensal. Isso mostra que as editoras ainda possuem um desejo de inovar, apesar das ideias precisarem se moldar às expectativas do mercado.