Finalmente! Saiu o aclamado Snyder Cut, versão do diretor original daquele que deveria ser o caminho natural dos heróis da DC Comics nos cinemas. Desde que, em 2017, a Warner/DC lançou aquela colcha de retalhos chamada de Liga da Justiça, em que Joss Whedon pegou a vaga de Zack Snyder, que saiu por divergências em meio a uma crise familiar (a filha dos Snyder, então diretor e produtora, havia se suicidado durante as filmagens), público e crítica viram a porcaria que o filme havia se tornado nas mãos do experiente diretor dos dois primeiros filmes dos Vingadores, na concorrente Disney/Marvel.
Ficou horrível: a Mulher Maravilha (Gal Gadot) tratada como um objeto pelo “male gaze” do novo diretor/roteirista, quieta e sem personalidade, um Aquaman (Jason Momoa) sem carisma, Flash (Ezra Miller) e Ciborgue (Ray Fisher) colocados de canto, com o agravante de falas irritantes e fora de lugar do velocista, que deveria ser o alívio cômico, mas só se tornou um idiota irritante fora de contexto, um Superman (Henry Cavill) incompreensível e um Batman (Ben Affleck) completamente descaracterizado. Isso, sem contar com um roteiro completamente sem propósito, pé nem cabeça (vale citar, aqui, que, de acordo com declarações de Snyder, menos de 25% do material original que ele havia roteirizado e filmado antes de precisar sair do projeto fora utilizado por Whedon e, de acordo com fontes internas à Warner, Whedon teria reescrito 80 páginas do roteiro original (o que dá, aproximadamente, uma hora e vinte minutos de filme, de acordo com a formatação padrão de roteiro literário de cinema) para dar ao filme “a sua cara”), uma palheta de cores sem o menor propósito e efeitos visuais lastimáveis (lembram do bigode “apagado” do Superman?), que completavam o desastre.
Graças a este fracasso, não de bilheteria, porque o filme deu um bom lucro (nada comparável com o que a Disney já faturava com seus filmes de heróis, mas, ainda assim, um bom lucro), mas de repercussão na audiência (o público ODIOU o filme) e crítica (idem), não demorou para os fãs de Zack Snyder levantar a bandeira (no caso, a hashtag) do #releasethesnydercut. Nunca, na história do cinema, fãs fizeram tanto barulho por uma “versão do diretor”. A Warner não queria. Aqui, é importante dizer que o filme de Snyder NUNCA ESTEVE PRONTO. Era mais uma “carta de intenções” de quem definiu uma narrativa identitária das personagens da DC Comics nos filmes anteriores (O Homem de Aço e Batman Versus Superman), que deveria entregar não uma apoteose, visto que havia uma continuação planejada, mas uma continuidade de adoção de uma leitura mais madura da visão DCnáutica (olha o neologismo!) de que os super-heróis seriam deuses na terra e teriam dilemas para lidar com seus poderes entre os humanos comuns e que teve seu trabalho interrompido por uma frustrada correção de curso para se adaptar e moldar ao sucesso da concorrente, aproveitando que o idealizador da visão abandonara o barco. Mas os fãs botaram na cabeça: “NADA pode ser pior do que foi ao cinema” e levantaram a tag até que Snyder comprou o apelo dos fãs e provocou os executivos do estúdio que, encurralados pela falta de bilheteria da pandemia, decidiram usar o produto como um bom headstart ao seu novo serviço de streaming, a HBO Max. “Se o Snyder Cut for bom, temos assinantes, senão, temos os assinantes e tentamos segurá-los com outros conteúdos”. US$35mi foram injetados no projeto, que fez parte de uma campanha de Snyder para uma instituição de prevenção ao suicídio e a “carta branca” ao diretor, que finalizaria seu projeto original, fora dada.
ONDE ESTÃO AS DIFERENÇAS?
Vamos começar pelos fatores visuais. Apesar de as tecnologias terem mudado do analógico para o digital, é ponto passivo que, quando a gente faz produtos cinematográficos, adotamos o formato de tela do Super 35mm, ou seja, 16:9 (para cada 16 unidades de medida na horizontal, nove da mesma unidade na vertical), até porque, na tecnologia de hoje, quando o filme chega ao streaming e/ou ao “home video”, é este o formato de tela que se encontra nos aparelhos de TV e monitores de computador mais comuns do mercado. No máximo, o 21:10, ou “super wide screen”, ou o técnico “anamórfico”, mais esticado. Mas Snyder foi fora da caixa: o formato de tela IMAX já é naturalmente mais estreito, mas ele não se conformou com isso e fez o filme ficar com um formato mais próximo do clássico 4:3 televisivo das décadas passadas. O que ele quis dizer com isto? Que o filme dele “aceitou” que foi “feito para a TV”? Não dá pra saber se este foi um recado intencional, mas, fato seja notado, o novo enquadramento funcionou, no sentido de composições bem planejadas e uma leitura de tela mais rápida por parte do espectador. Snyder também queria que seu filme fosse em preto e branco, mas não ganhou esta briga, mas fez com que a palheta de cores fosse tão pastel e escura que, fosse isso ou o P&B, não faria a menor diferença. O tom “dark” do filme combina com o estilo de direção, com a linha narrativa e as atuações, além de dar ao Batman uma ambientação protagonista no PG-13 (classificação indicativa do filme) mais pessimista e sombrio que você pode assistir. A fotografia é escura, contrastada, pouco saturada e eficiente: remete muito à identidade visual do “300”, que Snyder dirigiu (pasmem!) duas décadas atrás. A montagem é incrível: Snyder tira o nosso fôlego, ao mesmo tempo que nos dá tempo para digerir as informações. Como? Seus planos são cheios de ação, com câmeras lentas (neste filme, com uma justificativa narrativa convincente, mas falaremos disso depois) e speed ups muito bem localizados, mas são longos. Montagem de videoclipe passa longe do estilo de Snyder e isso deixa a narrativa densa mais palatável. Nada é usado para aliviar o tom da trama, a não ser uma ou outra piada do Flash, tão espaçadas que, ao invés de irritar, como fizeram no filme do Whedon, você agradece por elas. Fora o (competente) figurino e alguns pedaços de cenografia, a direção de arte ficou quase que completamente nas mãos da equipe de efeitos gráficos, que, ao meu ver, é o ponto baixo do filme. Não me levem a mal, a maior parte dos efeitos gráficos do filme são convincentes, mas há momentos em que, realmente, nos lembramos que o orçamento foi diminuto (feito para TV, lembra?).
TEM MAIS?
Mas as diferenças não são apenas visuais. Há uma identidade a se recuperar, aqui, personagens a se incluir, histórias a se contar e, neste aspecto, Snyder foi esperto e, bem escondidinho, conseguiu fazer mudanças em seu plano original, pensadas em cima daquilo que fãs e crítica fuzilaram Whedon durante todos estes anos (não vamos esquecer da briga entre Ray Fisher e Whedon e, posteriormente, executivos da Warner, devido a comportamentos do diretos em set, sem contar o “male gaze” sobre a Mulher Maravilha) e tornou filme bem mais “amigável” para a audiência contemporânea. Começando por aproveitar que o filme seria lançado como uma minissérie para TV (mas, vá por mim, assiste numa tacada só, porque é BEM melhor assim) e fazer valer a ideia de que o filme seria uma “versão do diretor” e usar quatro horas (sim, o dobro do que o original, que foi às salas de cinema, apesar de nós sabermos que isto foi uma decisão mercadológica da Warner, pois o original de Snyder teria, ao menos, três horas. Não, Whedon não é culpado por TUDO) para desenvolver suas personagens de uma forma que, depois, a história a ser contada poderia se desenrolar muito mais facilmente.
Esta foi a grande sacada de Snyder e, assim, temos uma trama bem redondinha, sem resumos, mesmo que sem gorduras (eu não colocaria nem tiraria NADA da história que Snyder contou!). Aqui, Batman é um herói pragmático, mas assolado pela culpa de ter se deixado levar pela trama de Lex Luthor e se responsabilizando pela morte de Superman, colocando em sua própria cabeça que a responsabilidade de reunir a Liga é sua. Uma Mulher Maravilha que, meu deus, em quinze minutos, levanta uma bandeira de segurança e força feminina que seu segundo filme solo não consegue em duas horas e, depois, a sustenta em bons momentos de roteiro e bons diálogos, com uma atuação impecável de Gal Gadot, passando a sensação que, fora Superman, não há ninguém tão poderoso neste mundo, sempre na atitude do “deixa que eu resolvo isso”. Aqui, vale lembrar que os planos sexualizados da Mulher Maravilha, se não “sumiram”, no mínimo foram muito bem escondidos, numa tentativa de reconquistar o público feminino sem precisar da direção de Patty Jenkins. Tanto Flash quanto Ciborgue têm seu tempo de tela respeitados e seus dramas muito bem desenvolvidos, ainda mais a gente sabendo que eles não tiveram as mesmas oportunidades que os outros de serem apresentados em filmes solo e Aquaman é mostrado como uma proto-personagem a ser desenvolvida com maior riqueza em seu filme, mas sem deixar a personalidade de lado. Ciborgue e Flash são mostrados como personagens evidentemente abaixo do panteão principal (Batman, Superman, Mulher Maravilha, Aquaman), mas com papéis-chave para a trama que viria a seguir. Foram uma hora e quarenta e cinco minutos só pra apresentar as cinco personagens da Liga, o vilão, Lobo da Estepe (Ciarán Hinds), e uma elucidativa descrição das intenções e jornadas de cada um. O primeiro ponto de virada do filme acontece aqui, quando o vilão descobre onde pode estar a terceira caixa-materna, encontra os heróis, tem um fight honroso contra a Mulher Maravilha e foge. Aqui é o momento em que os heróis descobrem que precisam de reforço e a gente descobre as motivações do vilão. À partir de agora, não tem lenga-lenga: tudo o que acontece leva a história à frente.
O FILME TEM MAIS PONTOS FORTES?
Sim, claro, vários. Mas não posso contar tudo, para não estragar a sua experiência. Vale dizer que Darkseid tem personalidade e seus ajudantes dão MUITO medo. Superman é muito badass, Alfred é carismático e o Batman é perturbado e, não, não profere NENHUMA piada no filme, o que o deixa de acordo com suas características originais. Aliás, a fidelidade às características de cada personagem é um ponto a ser ressaltado: se você lê quadrinhos, assiste a desenhos animados e acompanhou os heróis da DC durante a sua vida, você vai encontrá-los. Numa versão um pouco mais sombria e pessimista do que você esperaria? Provavelmente. Mas estão lá. Aliás, uma epifania que me ocorreu, enquanto eu escrevia esta crítica, foi de que Marvel e DC invertem suas tradições dos quadrinhos, no cinema. Enquanto a Marvel é mais alegre e espetaculosa, nas telonas (seus quadrinhos têm heróis com “problemas reais”, segundo o criador, Stan Lee), a DC é bem mais pé no chão e filosófica, quando seus quadrinhos têm uma tradição maior de entretenimento puro (a não ser em selos adultos, como Vertigo).
A duração do filme não incomoda, justamente por esta fluidez da trama e esta manutenção do interesse do espectador. Juro que, se você for como eu, chegará no epílogo se perguntando “mas já?”
E OS PONTOS FRACOS?
Fora os efeitos visuais que, em momentos, deixam a desejar, os epílogos fora de propósito, uma vez que a própria Warner chamou o Snyder Cut de “dead end” (rua sem saída) para a visão do diretor no universo cinematográfico de seus heróis. Especialmente o de Lex e Exterminador. Eu dou um crédito maior ao pesadelo de Batman (sim! É quando o Coringa de Jared Leto aparece!), mas, mesmo assim, a não ser que o público convença a Warner a, mais uma vez, trazer a visão de Snyder à vida, é desnecessário. E Jared Leto é um péssimo Coringa (parece que ele está sendo controlado por overdoses de lexotan!). Ah! E, Zack (sou íntimo… rs), peloamordedeus, ESQUECE ESSA HISTÓRIA DE SUPERMAN DO INJUSTICE, cara! Tô pedindo!
CONCLUSÃO:
Quatro horas de filme são, praticamente, um pedido de maratona de série pelo espectador, sim, mas valem a pena. Se você já leu algo sobre a filosofia embiutida nos quadrinhos de super-heróis, vai ver toda esta teoria aplicada em um filme. A telona faz falta, mas assista mesmo assim. Se todo mundo assistir, quem sabe, a gente não vê Darkseid chegando na Terra, não? O que vocês acham? Comentem!