Como Zack Snyder antes dela, Chloé Zhao desconstrói seus super-heróis e os obriga a questionar seu propósito no mundo, por meio de ritmos narrativos meditativos e melancólicos.
O universo cinematográfico da Marvel foi agitado neste final de semana pelo lançamento de Eternos, de Chloé Zhao. Baseado na série épica de 19 edições de Jack Kirby, The Eternals (1976), o filme explora a relação de um grupo de alienígenas imortais com as pessoas da Terra e entre si ao longo de milênios.
Zhao, que acabou de ganhar os Oscars de melhor direção e melhor filme por Nomadland (2020), apresentou seu conceito do filme para a Marvel Studios em 2018 e o longa foi desenvolvido como um projeto do coração para a cineasta, cujos filmes anteriores, Songs My Brothers Taught Me (2015) e The Rider (2017), foram dramas indie bem recebidos.
Então, foi uma surpresa quando Eternos recebeu uma resposta divisiva, evidenciada pela pontuação mais baixa no Rotten Tomatoes entre todos os filmes do MCU (48 por cento) junto com a menor nota no site CinemaScore (B) dentro da mesma categoria. Embora as pontuações do público no Rotten Tomatoes sejam significativamente mais altas (84 por cento), Eternos claramente não está funcionando para todos, o que torna o filme ainda mais fascinante dentro da estrutura do MCU e o número cada vez maior de adaptações de quadrinhos.
Pelo que vale a pena, acho que Os Eternos é uma dos melhores longas do MCU até agora e uma carta de amor ambiciosa aos super-heróis como uma mitologia moderna, algo que Jack Kirby estava naturalmente interessado em explorar mais tarde em sua carreira.
Inspirado em grande parte por Eram os Deuses Astronautas?, de Erich von Däniken, que fez afirmações ousadas sobre a influência alienígena nas primeiras civilizações, os Eternos de Kirby foi uma mudança marcante para o criador que definiu o Quarteto Fantástico, os Vingadores, os X-Men e a maior parte do Universo da Marvel. Eternos era a chance de Kirby fazer algo diferente, separado do maior e mais familiar Universo Marvel.
Ao longo de 19 edições, Kirby não apenas explicou as origens da vida no planeta, mas atribuiu todas as lendas de deuses e monstros dos humanos a duas raças de primos, os Eternos e os Deviantes. Zeus, Atenas, Gilgamesh, Satanás, vampiros, eram todas histórias formadas em torno da existência desses seres estranhos, nascidos de um experimento cósmico. As sementes do trabalho de Kirby aqui definiriam ainda mais a Marvel e a DC, mas também influenciariam filmes de ficção científica como a trilogia Matrix.
Mas, por mais que possamos olhar com carinho para o trabalho dos Eternos de Kirby hoje, não era esse o caso na época. Grande parte da resistência veio de fãs que queriam que os Eternos fizessem parte do Universo Marvel ou se separassem dele. Kirby não estava interessado em fazer referência a outros títulos em andamento da Marvel em seu livro; no entanto, devido a demandas editoriais ele cedeu e apresentou um punhado de agentes da SHIELD que ele rapidamente despachou e o Hulk, embora seja uma versão sintética cosmicamente alimentada. Assim que a série começou, as cartas dos fãs provaram que o título causava divisão entre os leitores de quadrinhos da época.
“Acima de tudo, a nova série de Jack Kirby, Os Eternos, me ofende […] a frivolidade com a qual Os Eternos foi escrito é o que eu estou reclamando […] não vamos negligenciar o duvidoso por uma questão de diversão“, escreveu um leitor. “Estou votando para que o mundo dos Eternos esteja fora do Universo Marvel. Para amenizar tal ruptura radical com a tradição da Marvel, ela poderia ser estabelecida como uma das muitas dimensões tangentes ao Universo da Marvel”, disse outro.
Criticas foram disparadas contra a caracterização dos Eternos feita por Kirby, algumas das quais se repetiram nas críticas do filme de Zhao, “Jack Kirby vive em um mundo quase totalmente desprovido de tal caracterização [como Stan Lee]. Suas histórias não têm vilões. Claro, existem pessoas que se opõem aos heróis, mas eles nunca são vilões […] Kro (que décadas depois seria dublado por Bill Skarsgård no filme) não é um vilão. Ele é pouco mais do que um insolente.” Mesmo assim, os leitores clamavam pela simplicidade das linhas divisórias do bem e do mal, falhando em ver que a descrição proposital de Kirby dos Deviantes e Eternos são a mesma, exceto por seus atributos físicos, um tema que Zhao ecoa e teria se beneficiado de uma exploração mais ampla.
Houveram cartas positivas também, com alguns leitores chamando o trabalho de Kirby de “obra-prima”, seu “melhor trabalho até agora” e um leitor percebendo a mudança que Kirby buscou empregar nos quadrinhos, “Eternos é diferente de tudo que eu já li nos quadrinhos. Neste livro, os eventos se movem em um ritmo muito mais lento, porque há muita atividade em tantos níveis.” Mais uma vez, essa estimativa se encaixaria perfeitamente em uma revisão dos filmes de Zhao. Por 19 edições e uma anual, a mais longa de qualquer quadrinho de Os Eternos já publicado até agora, as páginas de cartas continuaram dessa maneira. Obra-prima ou bagunça? Essa foi a questão até o cancelamento da série. No mínimo, a conclusão dessas páginas de cartas é que os consumidores de quadrinhos de super-herói sempre foram os mesmos, com argumentos presos entre o amor pelo familiar e o desafio do novo.
É irônico que muitas das críticas ao trabalho de Kirby tenham seguido Zhao em sua adaptação. Como história em quadrinhos e filme, Os Eternos e Eternos são obras, mesmo com suas falhas, que abrangem muito sobre o que ambos os criadores pensam sobre existencialismo, grande design e individualismo. Zhao se juntou às fileiras de Richard Donner e Zack Snyder como um dos poucos cineastas a abraçar totalmente os aspectos mitológicos desses personagens.
A comparação de Snyder é particularmente relevante dada a abordagem de ambos os cineastas à história coletiva dos personagens explorados. E Eternos compartilha a resposta divisiva de Homem de Aço (2013) e Batman v Superman: Origem da Justiça (2016), ambos de Zack Snyder, que da mesma forma teve uma abordagem desconstrutiva para super-heróis e os forçou a questionar seu propósito no mundo, através de um ritmo meditativo e melancólico, e um final trágico, mas esperançoso.
Em uma entrevista recente ao site francês Film Actu, Zhao citou Snyder como inspiração para o filme, particularmente sua opinião sobre Ikaris (Richard Madden), dizendo: “De todas as interpretações modernas do Superman, o Homem de Aço de Zack Snyder me inspirou mais porque ele abordou esse mito de uma forma autêntica e muito real…este filme deixou uma forte impressão em mim”.
Como mitos, esses personagens podem ter falhas monumentais, e as coisas que consideramos atributos na maioria das outras propriedades dos super-heróis: responsabilidade, amor, ausência de idade, são exploradas com o peso das consequências reais. Muito parecido com os filmes da DC de Snyder, Zhao aborda os super-heróis de maneira diferente da moral do bem e do mal que tantas vezes esperamos desses filmes. Ao olhar para os super-heróis como mitos, eles se tornam mais do que entretenimento que realiza desejos, eles se tornam experiências humanistas, representando toda a extensão do que significa viver como um humano, ascender e cair no verdadeiro estilo “Ícaro”.
Zhao vai mais além da norma, pois os Eternos não têm um vilão real. Personagens tomam rumos sombrios, traem e abandonam uns aos outros, mas isso vem de um lugar de identidade, quem eles são inerentemente, e não o que se tornam. Zhao imagina como seria difícil para os seres que existem há milênios realmente mudarem, mesmo quando carregados com novas informações. A busca por um propósito e a incapacidade de mudar de curso uma vez que esse propósito foi encontrado tem sido um elemento em todos os filmes de Zhao, e eu diria que, apesar dos superpoderes e sequências de ação, Zhao não está fora de seu aquário, mas jogando os eventos de seus filmes anteriores em uma tapeçaria maior.
Mesmo que Os Eternos não funcione inteiramente para todos os públicos, rejeito a ideia de que seja um filme ruim ou mal feito. Terei prazer em escolher um filme ousado, mesmo com falhas, em vez daquele que joga seguro. Há cada vez mais uma sensação, dentro das muitas análises de filmes, de críticos sentindo que é seu trabalho fazer com que os diretores saibam o seu lugar e que fiquem dentro do que se espera deles. Vimos isso com Uma Dobra no Tempo (2018), de Ava DuVernay, em que uma hipérbole negativa deu aos críticos permissão para descartar o trabalho e sua ambição.
Seja abertamente ou subtextualmente, há uma série de críticas mordazes de Eternos que olham para o filme como se Zhao estivesse tentando fazer um drama do Oscar, e não se divertindo ao trazer sua própria sensibilidade para um blockbuster. Muitas das críticas feitas ao filme estão ausentes de outras críticas aos filmes da Marvel que têm as mesmas falhas inerentes ao gênero. Por que um recebe elogios e outro não? Por que Zhao tem um Oscar? Por que Eternos não é uma história comum, ao invés de extraordinária? É porque o filme se leva a sério e não convida você a rir do que muitos ainda consideram ser apenas um conteúdo infantil? Evite se quiser, mas há preconceitos implícitos sobre como esses filmes são vistos de acordo com quem os faz e o que eles procuram acrescentar à discussão.
Por mais que os críticos e alguns espectadores se queixem de que “todos os filmes da Marvel são iguais”, a resposta a Eternos é uma prova de como essas reclamações são apenas falas para pessoas que desejam o familiar e não têm interesse em interrogar os sujeitos da cultura popular e nem de serem solicitados a participar de um olhar inquietante sobre o que significa heroísmo e o que realmente valorizamos. Não estou desapontado com os Eternos. Estou desapontado que, mesmo com os filmes de super-heróis ainda sendo a forma de entretenimento mais popular do mundo, ainda não conseguimos entender e apreciar o quão vastos esses filmes podem ser de acordo com seu material de origem. Eternos é uma conquista, e temo que vai demorar muito até que vejamos outra igual.
Texto escrito por Richard Newby para o Hollywood Reporter e traduzido pelo Nerdzoom.