Ontem (28), a família do ator Chadwick Boseman usou o instagram do ator para revelar a chocante informação de que o ator não resistiu a um câncer de cólon diagnosticado há quatro anos. Boseman escolheu travar sua guerra em silêncio, apenas com o conhecimento de familiares íntimos. Em meio ao tratamento, continuou trabalhando normalmente, mesmo que alguns deles exigissem um porte atlético, algo difícil de se conseguir em condições normais pelo nível de dedicação física e mental exigidos. O que dizer, então, de um ator que está em meio a um tratamento debilitante contra uma doença grave? Desnecessário dizer o tamanho de sua entrega aos seus personagens. Infelizmente, o roteiro dessa peça chamada vida nem sempre aparece com boas reviravoltas. Só resta aos fãs celebrar a sua vida, encerrada precocemente aos 43, através do trabalho ao qual se dedicou tanto.
Boseman começou sua carreira no teatro, no estado da Carolina do Sul, onde nasceu. Escreveu e encenou sua primeira peça ainda na escola. Decidiu seguir caminho como artista e se formou em belas artes em Howard College com a intenção de dirigir e escrever. Anos depois se formou na British American Dramatic Academy para se qualificar como ator. Até aí já havia feito pequenos papeis em séries como ER, Castle, CSI: NY e Law & Order, mas nada de substancial. Agora, formado, se sentiu confiante para dar um passo além e tentar carreira em Los Angeles, que foi o que fez em 2008, quando já tinha 32 anos, uma idade considerada tardia. É verdade que houveram trabalhos mais discretos no seu currículo: Mensagem do Rei (2016), A Grande Escolha (2014), Crime Sem Saída (2019) e todo o seu trabalho na TV. Porém, em seus melhores filmes, o ator deu vida a personagens únicos da história, que abriram caminho para gerações futuras de jovens negros.
No Limite, a História de Ernie Davis (2008)
O longa conta a história de Ernie Davis, jogador de futebol americano e primeiro atleta negro a ganhar o troféu Heisman, prêmio dado ao melhor atleta estudantil do ano. As categorias estudantis são bastante populares nos EUA, daí a importância da homenagem. Ambientado nos anos 1960, o filme explora temas importantes da época como o movimento dos direitos civis e o racismo de uma América segregada por leis discriminatórias. Ernie é interpretado por Rob Brown, já Boseman tem um papel pequeno, porém especial: ele faz o lendário jogador Floyd Little, que atualmente também luta contra um câncer.
42 – A História de Uma Lenda (2013)
Primeiro trabalho de Chadwick como protagonista. Aqui ele interpreta o maior ídolo do baseball, Jackie Robinson. O jogador foi o primeiro atleta negro a atuar na Major League of Baseball (o equivalente à NFL do futebol americano), chegando lá em meados dos anos 1940. Robinson virou lenda não só por ser superior aos demais em talento, mas também por sua determinação em não deixar os racistas atrapalharem sua carreira, algo extremamente difícil de conseguir em um país onde o racismo era institucionalizado por leis e metade do país segregava fisicamente negros e brancos. A história do longa é centrada especificamente nos eventos ocorridos em 1947, período no qual Robinson se tornaria um dos homens mais amados dos EUA. O filme conta com nomes como Harrison Ford e Alan Tudyk no elenco.
Get on Up – A História de James Brown (2014)
O famoso cantor de funk/soul, James Brown, não era exatamente um exemplo moral a ser seguido: Suas explosões de raiva que resultavam em agressões físicas contra as mulheres com quem se relacionava eram bem conhecidas. Apesar disso, ele tinha consciência social e usou seu trabalho como artista para contribuir com o movimento pelos direitos civis, escrevendo músicas e fazendo shows como protesto, um desses shows inclusive ajudou a conter uma revolta na cidade de Boston – o episódio foi narrado no documentário “The Night James Brown Saved Boston” (A Noite em que James Brown Salvou Boston, em tradução livre). Tudo isso é mostrado no longa biográfico Get On Up, com nomes de peso como Viola Davis (que faz a mãe do cantor), Octavia Spencer e Dan Aykroyd.
Marshall: Igualdade e Justiça (2017)
O filme é um drama biográfico sobre o jurista Thurgood Marshall, advogado que dedicou a carreira a defender a igualdade racial perante tribunais federais e à Suprema Corte dos EUA. Teve sucesso em 29 dos 32 casos que defendeu diante do “STF americano”, com destaque ao caso ‘Brown v. Board of Education’, onde a Suprema Corte determinou, em 1954, que a segregação de alunos por raça nas escolas públicas era inconstitucional. A decisão marcou o início do processo de dessegregação por raça nas instituições públicas de ensino, que enfrentou resistência em diversos estados americanos. Anticomunista ferrenho, trabalhou em parceria com o FBI para desacreditar lideres comunistas que, segundo ele, usavam o movimento dos direitos civis para impulsionar uma agenda comunista que prejudicava o trabalho dos ativistas. Nos anos 1960, foi promovido a Advogado-Geral da União e posteriormente foi nomeado juiz da Suprema Corte, o primeiro jurista negro. O filme é baseado num dos casos em que Marshall atuou no começo da carreira, quando defendeu um homem negro acusado falsamente de estupro.
Pantera Negra e Universo Marvel (2016-2019)
Foi como o Pantera Negra que a fama e o reconhecimento finalmente vieram, aos 41 anos. Depois de uma aparição empolgante em Guerra Civil (2016), ele voltou com tudo em seu próprio filme solo em 2018. Pantera Negra bateu recordes de bilheteria, foi o primeiro filme da Marvel a conseguir mais de US$ 1 bilhão em arrecadação sem ter Homem de Ferro no elenco. O longa também recebeu sete indicações ao Oscar, incluindo o de melhor filme. Ganhou três. É verdade que Pantera Negra não foi o primeiro filme bem-sucedido de um personagem negro das HQs: Wesley Snipes já havia ganhado notoriedade com Blade – O Caçador de Vampiros, em 1998, mas esse personagem não é exatamente um super-herói no sentido da palavra. T’Challa, ao contrário, se encaixa melhor que Blade no manto do super heroísmo, em um filme voltado para o grande público e que celebra a África a todo o momento.
Há 80 anos, atores negros sequer podiam interpretar algo além de escravos e empregados. Nos bastidores a situação também não era diferente. Hattie McDaniel, que o diga. Hoje, eles fazem filmes caríssimos, que também rendem fortunas por serem amados pelo público. A existência de um filme como Pantera Negra é uma prova concreta do quanto os EUA e o resto do mundo mudou para melhor nesse aspecto, apesar das tensões raciais ainda estarem presentes, conforme vemos nos noticiários.