David Fincher é considerado um dos maiores diretores do cinema contemporâneo. Entrou na indústria por meio de clipes musicais nos anos noventa, e já na mesma época começou a ganhar notoriedade como diretor, dirigindo produções que atualmente são vistas como clássicos do período, como Se7en – Os Sete Crimes Capitais e Clube da Luta. Mais recentemente fez o ótimo Garota Exemplar e decidiu enveredar pela TV com House of Cards e Mindhunter, séries onde trabalhou não só como diretor, mas como showrunner. Ambas as séries são produções originais da Netflix, com quem Fincher tem contrato para produzir seus projetos. O mais recente deles é Mank, que chegou à plataforma de streaming nesta última sexta-feira (04).
Neste novo projeto, que surge como o primeiro grande favorito da temporada de premiações, Fincher mergulha no começo da era dourada de Hollywood, na década de 1930, ao retratar a trajetória do roteirista Herman J. Mankiewicz – ou simplesmente Mank (interpretado no longa por Gary Oldman), conhecido por dividir com Orson Welles os créditos pelo roteiro de Cidadão Kane. Porém, Mank foi muito mais do que o roteirista deste longa. Sua contribuição para a indústria na época fez dele um dos roteiristas mais bem pagos de Hollywood no começo dos anos 1930.
Mank esteve em desenvolvimento desde 1997. David Fincher tencionava dirigi-lo após Vidas em Jogo (1997), mas ao invés disso fez Clube da Luta (1999). No entanto, a determinação de Fincher em fazer este filme não vem do interesse no personagem principal, mas no fato de que o roteirista é ninguém menos do que o seu próprio pai, Jack Fincher, falecido em 2003.
O Fincher-pai escreveu Mank baseado numa fascinação pessoal pela figura do famoso roteirista. Jack era jornalista e aspirante a roteirista. Chegou, inclusive, a escrever um roteiro sobre Howard Hughes que quase virou filme, mas os produtores preferiram uma versão diferente de outro roteirista.
Jack Fincher fez de Mank sua declaração de amor ao cinema. Ele era fã do longa e dividia essa admiração com David. Jack também sonhava que o filho dirigisse o filme que escreveu, porém, não viveu tempo o suficiente para ver isso acontecer. Agora, dezessete anos após o falecimento do pai, David Fincher o homenageia ao tirar seu filme do papel.
Quem foi Herman “Mank” Mankiewicz?
Filho de imigrantes judeus alemães, Mank começou a ganhar a vida como jornalista ainda muito jovem. Era correspondente na Europa no começo da década de 1920, quando voltou aos EUA e começou a conciliar seu trabalho de jornalista com o de crítico de teatro. Sua amizade com gente do mundo artístico abriu uma porta para que ele colaborasse em peças de teatro em Nova Iorque, o que chamou a atenção de Hollywood no final da década.
Ele foi contratado pela Paramount e após um mês de trabalho já ganhava muito bem. Ele escrevia os diálogos impressos e as explicações, mas quando o cinema deixou de ser mudo, ele não teve nenhum problema em se adaptar à nova realidade. Não demorou para desenvolver um estilo próprio de escrita, que ajudou a inaugurar uma nova era de filmes apoiados no diálogo, com seu “estilo satírico, inteligente e tipicamente americano, repleto de humor“, nas palavras da crítica de cinema Pauline Kael. Roteiristas escrevendo filmes sustentados inteiramente no diálogo não despertam muita admiração na indústria atualmente, outros fatores também são levados em conta, mas numa Hollywood recém-saída do cinema mudo, um talento como esse era inestimável.
Nos anos 1930, Mank se tornou um dos roteiristas mais bem pagos da indústria e escolhia à dedo, à pedido da Paramount – estúdio para qual trabalhava, novos roteiristas para desenvolver projetos para o estúdio. Ele também atuou como “script doctor”, um roteirista encarregado de melhorar roteiros de outros profissionais. Por esses trabalhos, ele não era creditado.
Um desses famosos projetos pelo qual Mankiewicz não foi creditado foi O Mágico de Oz (1939). Segundo Pauline Kael, a ideia de filmar as cenas do Kansas em preto e branco para contrastar com as cores de Oz foi ideia dele. No entanto, seu roteiro foi descartado por ser grande demais e ter dedicado a metade dele em retratar Dorothy no Kansas.
Em meados dos anos 1930, Mank saiu da Paramount e foi parar como roteirista-chefe na toda poderosa MGM, o maior estúdio da época. Sendo ele um roteirista de prestígio no maior estúdio da indústria, não demoraria para que ele se misturasse a grandes empresários e outros figurões de Hollywood nas grandes festas que ocorriam em Los Angeles. Foi nesse período que conheceu o magnata das comunicações William Randolph Hearst, dono de uma cadeia de rádios, revistas e jornais espalhadas por todo os EUA. Mank conheceu também a atriz Marion Davis, a amante favorita do ricaço.
Mankiewicz, no entanto, não era só famoso como roteirista, ele também tinha um problema sério com o álcool, que deixava o seu comportamento bastante errático. Ele nunca conseguiu se livrar do vício.
O infame roteiro de Cidadão Kane
Até hoje não se sabe exatamente quem deu a maior contribuição ao roteiro, se foi Herman Mankiewicz ou Orson Welles. O fato é que ambos foram creditados por ele, e ambos sofreram perseguição de Hearst, que achou que a história era sobre ele e fez o que pode para difamar os dois por anos, bem como para atacar membros do elenco, incluindo a atriz Dorothy Comingnore, intérprete da segunda esposa do protagonista, claramente inspirada em Marion Davis. A atriz finalmente teve a carreira e a reputação destruídas nos anos 1950 graças à esta perseguição, iniciada após o lançamento do filme em 1941, conforme já fora discutido aqui.
Nem Herman, nem Orson confirmaram que o filme era de fato sobre William Randolph Hearst, mas haviam semelhanças demais para negar que houve ao menos uma inspiração na figura do magnata. O milionário proibiu suas empresas de mencionarem o filme, o que incluía também material de publicidade e críticas. Ele também usou seu império midiático para intimidar exibidores. Orson Welles precisou ameaçar entrar com um processo contra a RKO Pictures, estúdio responsável, para que eles lançassem o filme. O longa foi lançado mas a pressão de Hearst prejudicou sua performance nas bilheterias.
Apesar de toda a perseguição, os críticos gostaram bastante de Cidadão Kane e o filme recebeu 9 indicações ao Oscar. Ganhou apenas um, o de melhor roteiro original. Certamente o formato não-linear da história, algo inédito para a época, colaborou na vitória. No entanto, nem Mankiewicz, nem Welles compareceram à premiação, provavelmente crentes de que sofreriam mais retaliações de Hearst durante o evento, o que não aconteceu.
Após a cerimônia, começa a disputa pública pela autoria do roteiro. Mankiewicz ficou irritado por Welles ter dito num famoso programa de rádio que escreveu o roteiro sozinho, o que fez com que o roteirista fosse até o sindicato da categoria para reclamar que Cidadão Kane foi exclusivamente escrito por ele. Welles respondeu que o plano dele sempre foi o de uma autoria conjunta, ao passo que Mankiewicz acusou o diretor de oferecer dinheiro a ele para que Welles aparecesse como o único roteirista, algo que Welles negou veementemente. O aborrecimento de Mankiewicz com Welles vinha desde a divulgação do filme, que vendia Cidadão Kane como um “show de um homem só”, onde Welles era o diretor, o protagonista e o roteirista.
Fim da Vida
Além de Cidadão Kane (1941) e O Mágico de Oz (1939), Mankiewicz também se destacou por escrever Man of the World (1931), o drama esportivo Ídolo, Amante e Herói (1942) e o drama O Homem do Dia (1952), seu último filme. Mankiewicz morreu aos 55 anos, em 1952, vítima de uremia. Ele foi casado uma vez e teve três filhos. Seu irmão mais novo, Joseph L. Mankiewicz, teve uma carreira duradoura em Hollywood como diretor, produtor e roteirista. O filho dele – Tom Mankiewicz, sobrinho de Herman, também seguiu carreira como produtor, diretor e roteirista, se envolvendo em projetos como Superman – O filme (1978) e a franquia 007.