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Sandman e quando os sonhos se tornam reflexo da realidade

Sandman é uma das obras mais conceituadas da nona arte. Ela se encontra no Top 20 de melhores obras da ficção de acordo com o New York Times. Sendo uma das séries mais premiadas e conceituadas dos quadrinhos, ela é considerada a obra máxima de Neil Gaiman. E é claro, fora o quesito de qualidade, ela também gerou várias histórias derivadas que construíram esse universo. Quando Gaiman começou a escrever a série, durante as primeiras edições ela ainda fazia parte do universo DC, e também havia o medo do cancelamento da série. Com isso em mente Gaiman por um período escreveu histórias fechadas, sem ter uma continuidade direta, o que não seria mais o caso após o sucesso da história.

Lançado no período de 1989 e 1996, a série principal teve 75 edições com 24 páginas cada. A obra se tornou um sucesso absoluto, recebendo diversas edições especiais, derivados e revisitas pelo próprio autor. Em meados de 2011 surgiu rumores de uma possível adaptação ao lado de Joseph Gordon-Levitt, entretanto ela nunca viu a luz do dia, e os fãs do canal Morpheus Dream decidiram fazer em 2017 um “fan trailer” que surpreendeu até mesmo o Gaiman. E agora no ano de 2022 tivemos enfim a adaptação para a Netflix no formato de dez episódios, que surpreendentemente é fiel aos quadrinhos.

A série traz o melhor da obra, ao mesmo tempo que a atualiza para os dias de hoje sem perder sua essência. Essa obra me fez questionar durante muito tempo o conceito não somente do sonhar, mas também das histórias que permeiam nossa sociedade. Eu me lembro até hoje da primeira vez que li Sandman e quando cheguei no terceiro encontro que o personagem tem com Shakespeare onde é questionado o preço por contar histórias. E agora vendo a série a pergunta recai sobre mim de novo. Os sonhos, as histórias e tudo aquilo que nos molda são reflexos daquilo que vivemos?

Os sonhos que nos move adiante

Bette no centro e os demais personagens afetados pela pedra do Morfeus em Sandman.

No episódios 5 da série temos a adaptação da edição “24 hour dinner” que em tradução livre seria “jantar 24 horas”. Nela acompanhamos o personagem John Dee que está em posse da pedra dos desejos de Sandman, que torna o possuidor capaz de moldar a própria realidade à sua vontade. Ele se senta em um restaurante 24 horas de estrada, e a partir disso começa a modificar a realidade das pessoas em sua volta com o argumento de que as mentiras os tornam falsos e somente a verdade pode os libertar. Chegando ao final do episódio, Morfeus consegue recuperar a sua pedra e termina rebatendo o argumento de John, dizendo que a humanidade busca esperança nos sonhos, de que eles são os motivadores para nos mantermos em uma realidade tão caótica e cruel. Apesar de toda a violência presente no episódio, a cena mais marcante pra mim envolve a personagem Bette Munroe, que é a garçonete do restaurante. O sonho dela é ser uma escritora, e passa o tempo dela escrevendo histórias sobre as pessoas que passam pelo restaurante e escreve para elas um final feliz. Utilizando da pedra, John Dee faz com que ela queime todas as páginas que ela já escreveu.

O impacto dessa cena e a violência presente, vai além de algo físico, onde o que é destruído e ferido não é somente os sonhos de Bette, mas também suas esperanças. A realidade é cruel, e capaz de ferir até mesmo as pessoas mais fortes, e são através de sonhos e histórias que nos motivamos a enfrentar essa crueldade. Aquilo, diferente do que John fala, não é uma forma de escapar da realidade ou “mentir”, e sim um local de refúgio onde saberemos que ainda há algo para ser conquistado. É claro que sempre existirá as mentiras nocivas que se espalham e criam os reais danos para a sociedade em questão. Contudo do que adianta lutar pelo presente sendo que não podemos sonhar  pelo futuro adiante?

Quando o sonho não é o suficiente

Morfeus e sua irmã Morte nos quadrinhos.

No episódio seguinte, que adapta a edição chamada “O som das asas”, onde temos uma perfeita adaptação dos diálogos entre Morfeus e sua irmã Morte vemos uma resposta à ideia de indiferença quanto aos nossos objetivos. Ao termos sonhos, sempre encontramos em diversos momentos da nossa vida a pergunta “O que eu devo fazer para chegar até isso?”. Contextualizando, se você sonha em ser um diretor de cinema por exemplo, você faz essa pergunta a si mesmo e pensa que irá escalar passo à passo até o pico. Irá começar com um emprego comum, juntará dinheiro para estudar, logo após irá se mudar e entrar no mercado, e então com esforço e foco conseguirá alcançar o seu sonho.

Mas será mesmo? Essa ideia de escalar até alcançar o seu objetivo se baseia na Meritocracia e que conseguirá tudo através de suas conquistas.  Só que a pergunta que eu lhe faço é, uma pessoa de uma família pobre ou classe média conseguiria chegar à profissão do mesmo jeito que alguém que tenha uma renda alta, ou até mesmo pais que já estão inseridos no mercado? Foram exemplos simplistas, mas existem diversos outros que mostram a ilusão de um sistema de escala igualitário, sendo que na sociedade atual sabemos que não é. E aqui na realidade, muitas vezes nós ficamos perdidos pelo desejo de alcançar tal sonho. E isso acaba nos cegando, seja para a ilusão de que você irá alcançar aquilo em algum momento, ou a desilusão de que aquilo que você queria não era o esperado.

E essa desilusão é o que acontece com Morfeus no episódio 6. Após reconquistar seus três itens de poder, ele acreditava que se sentiria melhor, mas isso não ocorre. Agora o personagem se enfrenta questionando sua própria existência e motivações além das suas responsabilidades normais, e com isso ele vai de encontro com sua irmã Morte. Ele acompanha sua irmã realizando o seu trabalho de ajudar aqueles que faleceram a seguir em frente, e com isso aos poucos começa a perceber a sensibilidade que ela tem com os humanos.

Questionando isso, a Morte diz que teve um momento que pensou em desistir, deixar tudo de lado e parar com isso. Após diversos momentos marcantes onde ela “ceifa” algumas pessoas, ela levanta a ideia de que as pessoas possuem um apego à vida, que a martirizam como algo perfeito e que precisa ser protegido, e ao morrer culpam a morte em si dizendo que ela está tirando esse “tesouro” delas. E no final o conselho que a Morte dá ao seu irmão é que eles (os perpétuos) não estão aqui para serem superiores aos humanos, e sim servir a eles, e no final das contas não se trata de um objetivo, e  sim daquilo que você decide fazer.

Morfeus e Morte da adaptação da Netflix.

A crise existencial pela qual Morfeus passa no episódio, reflete a própria humanidade quando encaramos aquilo que é o nosso sonho, mas em determinado momento aquilo se torna somente uma ilusão, seja por questões pessoais ou profissionais. Ao olhar para o exemplo citado anteriormente, a pessoa que deseja ser um diretor de cinema chega em um momento e percebe que talvez não consiga chegar naquilo. Mas isso seria o fim? A pessoa começa a se questionar sobre qual era o motivo dela querer aquilo: Era a profissão? O fato de gostar da área? O cinema em si? E então ela relembra sobre quando decidiu isso, quando pela primeira vez assistiu 2001, ou Pulp Fiction, ou Senhor dos Anéis. Ela entendeu que ela não amava a profissão, e sim o cinema em si, a área pela qual ela queria ingressar, seja como editor, roteirista ou produtor. O sonho não refletiu sua paixão, mas a realidade feita a partir da mídia que destaca diretores e atores, esquecendo de outras importantes áreas da profissão, e com isso gerou esse objetivo. A falsa ilusão criada pela distorção de sonhos, causa uma visão cega de pensamento próprios.

O peso de sonhar

Morfeus e Shakespeare nos quadrinhos.

Ainda no episódio 6, temos as primeiras cenas do Morfeus no passado, e entre isso vemos pela primeira vez Shakespeare. Um personagem importante para as HQs, e tem três aparições ao longo das 75 edições. Após seu primeiro encontro com Morfeus, Shakespeare recebe uma oferta do perpétuo que diz dar o poder de escrever histórias que irão ecoar para sempre, mas em troca disso ele pede para assistir duas peças dele. E citando somente o encontro final, temos aqui não a visão do “gênio” e sim do homem, cuja vida foi fragilizada por suas histórias.

Shakespeare cita que durante grande parte da sua vida, viu ela passar sem sequer perceber. Ele cita que viu o seu filho morrer, e estava ferido, entretanto ao ver aquilo ele sentiu que agora poderia escrever com mais veracidade uma morte real. Ao alcançar o seu sonho, ele  se viu realizado mas imerso em uma realidade da qual tudo que rondeava sua vida era somente mais um complemento daquilo. Viver sem de fato conhecer a vida, e no final entregar ela para os sonhos, as histórias da qual ele não viveu.

Todos os pontos citados refletem para mim não somente esse ponto, mas também o de Gaiman em si. Em “jantar 24 horas” vemos como o Gaiman pensa sobre a realidade das histórias, e seu papel na realidade. Já no encontro com a Morte, temos um autor descrente com sua própria obra, sem saber qual rumo tomar. E no último encontro com Shakespeare vemos um Neil Gaiman mais maduro, mas com as cicatrizes de sua carreira.

Os sonhos nos movem, e além disso nos torna pessoas capazes de fugir por alguns momentos dessa realidade. Entretanto os riscos por volta deles são grandes, desde a estrutura social que descontrói nossos sonhos, até uma imersão total nele da qual nos faz perder nossa própria vida. Entretanto ainda é possível encontrar algo além dos sonhos que temos, e usando deles para experimentar de fato uma realidade melhor. Não há uma resposta exata para tudo isso, mas no final você encontrará a sua, assim como Morfeus encontrou, e disse após seu encontro com sua irmã Morte:

“Há muito o que fazer em meu reino. Muito a restaurar. A criar. Encontrei o conforto que procurava, não da maneira que imaginei. Dos sonhos, conjuro um punhado de grãos amarelos. Arremesso os grãos no ar. E ouço. O som das asas…”

LINKS PARA CONTINUAR NO TEMA

Sandman, de Neil Gaiman: Qual o Custo dos Sonhos?

Neil Gaiman — The Interview I’ve Waited 20 Years To Do

Interview Neil Gaiman – The Guardian