Quem conhece e, especialmente, quem segue a carreira das irmãs Watchowski sabe que nã há espaço para obras rasas e tramas de fácil compreensão para estas duas. “Matrix” (The Matrix, 1999), que deu nó até na cabeça do mais talentoso nerd, de tanta filosofia, “A Viagem” (Cloud Atlas, 2012), que tece uma intrincada teia de acontecimentos, explorando modernas teorias científicas e até a versão delas de Speed Racer (2008), que era pra ser um blockbuster, mas não foi tão aceito pelo público são as grandes obras das diretoras e o projeto delas na NETFLIX não poderia ser diferente.
Uma série que fala de diversidade, poliamor e toca em quase todos os tipos possíveis de preconceito, Sense 8, apesar de não largar a filosofia pesada de Lili e Lana de lado, adiciona um pesado tempero político ao complicado texto e, talvez por isso, não tenha alcançado o sucesso que o serviço de streaming esperava. Ao mostrar uma estética à qual um público de blockbusters não está acostumado e colocar em pauta temas que o público mais geral não sente conforto em discutir (lembremos que ver um SIMPLES beijo gay em uma novela na maior emissora do país é tabu!), mostrando tudo em tela, infelizmente, o que as irmãs (que são transexuais e VIVEM este preconceito em persona) conseguiram foi um grande repúdio reagindo à primeira temporada, uma segunda temporada quase (só não completamente porque a série e os assuntos tratados têm, SIM, um público interessado) ignorada e o cancelamento precoce da série, sem a conclusão da trama.
A série trouxe, ao longo de duas temporadas de 12 episódios cada, incluindo o especial de Natal (que teve 120 minutos e um roteiro de longa, iniciando a segunda temporada), além de uma intrincada trama de ficção científica, que esbarrou no clichê de organizações secretas e conspirações governamentais, discussões sérias e atuais, como casamento homossexual, transexualidade e poliamor, destrinchando em detalhes os problemas que os assuntos acarretam às pessoas envolvidas, como famílias que não aceitam, sociedade que dificulta a liberdade de uma pessoa ser ela mesma, a adaptação a uma transformação drástica e a necessidade de se levantar uma bandeira, tornando-se mártir em nome da liberdade de outras tantas pessoas que passam pelo mesmo, além de pegar menos pesado, mas também abordar a desigualdade social e a violência que é gerada à partir dela e as barreiras que uma cultura tradicionalista pode impor ao crescimento individual e social.
Sempre permeando as discussões com muita boa filosofia, fazendo referências a bons punhados de livros e autores, sem contar músicas e, claro, cinema, incluindo as autorreferências a Matrix e a clássica Star Wars, apesar de poder ser classificada como uma série panfletária (mais um ponto negativo com o grande público), em Sense 8 NADA é gratuito. Tudo colabora com uma eficiência estrondosa para levar a trama à frente e o que não o faz leva ao público um necessário respiro com deleite de belíssimas imagens, com uma fotografia e uma coreografia primorosas, sem contar a escolha de trilha musical, sempre magistral. Me desculpe, mas, se você não gosta das pausas para cenas de sexo coletivo de Sense 8 ou se não tem paciência para os momentos músico-filosóficos da série, você não tem o menor senso estético.
E, além de excelentes diretoras, tanto em imagem quanto em elenco, as Watchowski são ótimas, também, em escolher sua equipe e denotar uma linguagem primorosa. O uso da luz na série é fantástica e a montagem é algo incrível. Cada corte é dado no momento exato e o be-a-bá do cinema, como eixo, coerência espacial e quarta parede vão pras cucuias num balé louco, que talvez seja a melhor montagem já feita para uma série de TV, na história.
Mas a série foi cancelada e uma multidão (aparentemente, não tão grande assim) de fãs ficou órfã e, ao menos no Brasil, onde parece que a série ganhou um patamar cult, especialmente depois que equipe e elenco vieram à Parada LGBT de São Paulo para gravar parte da segunda temporada, a revolta nas redes sociais gerou uma constrangida resposta da sempre simpática operadora de streaming, dizendo que, no resto do mundo, a série não obteve o retorno desejado. Retorno. É fato que tudo no mundo capitalista gira em torno do dinheiro e, como disse uma vez Andy Warhol (google it, baby) “Bons negócios são a melhor arte”, então, se a série não dá retorno, é cancelada.
Mas a Netflix fez um sacrifício e armou um compacto de terceira temporada, num episódio de duas horas e meia, para resolver o conflito dos sensates com a BPO e todas as questões de relacionamentos entre o “cluster” protagonista. Um filmão pra amarrar todas as pontas soltas e, quem sabe, no futuro, vender um box de Blu-ray duplo. O season finale é um pout pourri de tudo o que já vimos, ficando parecido com uma grande sequência de fan services, do primeiro ao último minuto. Confesso que comecei um pouco sem entender a intenção das diretoras, porque o episódio começou muito com cara de filme de ação e as poucas referências filosóficas e o excesso de violência e uma aparente pressa para chegar a uma conclusão do conflito me deixaram com a impressão de terem feito apenas um episódio pro-forma, mas logo se percebe o roteiro em cinco atos e uma divisão 50-50%, deixando a primeira metade para conflitos com a BPO e a segunda com o cluster rival.
Tanto o roteiro quanto a linguagem visual do episódio vão ganhando peso e complexidade com o tempo e, especialmente depois da primeira meia-hora, ganha aquela cara que os fãs conhecem. Claro que, como todas as séries, o final não agradará a todos. Parecendo final de novela, bem brega, com felicidade demais e mel escorrendo pelas bordas da tela, o fim de Sense 8 é uma resposta a um foreshadowing entregue neste mesmo capítulo e, em termos de linguagem, significa que este pode não ser o final mais “inteligente” para uma série do nível de Sense 8, mas é o final que todos nós queremos para os conflitos de nossas vidas. E as personagens conquistaram isso, oras! E as irmãs têm, inclusive, o fantástico senso de humor de inserir um bolo batizado para justificar alguns dos acontecimentos do encerramento. E a série finaliza com aquilo que a fez mais famosa e amada (e odiada): uma cena de sexo coletivo para ninguém botar defeito! Digno.