Você já leu Philip K. Dick? E William Gibson? Talvez Isaac Asimov? Ah, você não gosta de livros de ficção científica – ou, mesmo, não gosta de ler e ponto. E de cinema, você gosta? Então, provavelmente já assistiu “Blade Runner”, “Exterminador do Futuro”, ou “Matrix”. Ou, se gosta de animes, já assistiu “Ghost in the Shell” ou “Akira”? Pois estas são as (principais) referências usadas pela roteirista Laeta Kalogridis (que tem no currículo, entre outros roteiros, nada menos que “A Ilha do Medo” e “O Exterminador do Futuro: Gênesis” e produziu “Avatar”), para criar a nova série cyberpunk da Netflix.
Em comum entre todas estas referências, está narrativas intrincadas e inteligentes, com plot twists incríveis e ingredientes variados para evitar a monotonia. Altered Carbon é uma série que explora conceitos tecnológicos com toneladas de futurismo fantasioso, mas que levantam questões filosóficas densas, que servem tanto de mote para levar a trama adiante, quanto apenas de pano de fundo, quando a filosofia é quase esquecida e a porradaria e o sangue rolam soltos, quase espirrando para fora da tela. Mas tudo o que acontece tem um porquê e poucas pontas são deixadas soltas na série.
Nela, Takeshi Kovacs é um Envoy (utilizarei os termos originais, e não os traduzidos, ok?), ou seja, um membro de um grupo dito como “terrorista” que, séculos (sim, séculos!) antes do início da narrativa principal (isto, porque, durante os episódios, seguiremos ALGUMAS linhas temporais, para entendermos melhor onde Kovacs se mete e por que ele age daquela maneira), tentou destruir uma tecnologia revolucionária, uma espécie de implante na nuca das pessoas, o stack, que “salva” toda a “configuração cerebral” delas, mantendo memórias, conhecimentos e comportamentos intactos, mesmo com o corpo morrendo. Isto permite que tudo isto seja transferido de corpo e a pessoa continue vivendo, mesmo sem seu corpo original.
Altered Carbon não cita o ano exato em que a trama ocorre, mas as personagens constantemente se referem a nós (e, até, a tempos depois de nós) como “civilizações antigas” e constantemente somos lembrados que o transporte à velocidade da luz entre planetas (e, até, galáxias) acontece e que o stack fora criado para suportarmos isto. Outra questão é os comércios criados paralelamente e em volta do stack. A clonagem humana deixou de ser um tabu, para que pessoas encomendem clones de si mesmos, permitindo que se viva para sempre, com a mesma aparência. Existe, inclusive, a possibilidade de se fazer uma impressão em 3d de um corpo, mas este é um recurso proibido na sociedade da série. Há, também, a possibilidade de se fazer um backup periódico do seu stack, para que, na posibilidade de seu implante ser destruído junto com seu corpo na ocasião da sua morte, ele ser restaurado para ser implantado em um novo corpo.
Conhecendo tudo isto, agora, podemos falar das implicações sociais destas tecnologias mostradas pela série, a primeira bem óbvia: tudo isto está à sua disposição, desde que você tenha dinheiro para pagar. Empresas oferecem os serviços, mas apenas que tem MUITA grana pode usufruir. Quem não tem grana, se vira com o que tem. Por exemplo, se você não tem um clone, o governo te provém a “sleeve”(capa, como eles chamam os corpos) gratuitamente, mas será a sleeve que estiver disponível e você não tem o direito de escolher. Se você não pode pagar pelo backup e seu stack for destruído, você tem uma “morte real” (ou seja, amigão, FOI!). Há, ainda, os religiosos, que acreditam em alma e não permitem o procedimento de resleeving (colocar o stack em outra sleeve para continuar a viver).
É neste ambiente em que Kovacs é recolocado em uma Sleeve por um ricaço, Laurens Bancroft (James Purefoy), para, em troca de uma nova chance e perdão de todos os seus “crimes”, solucionar a trama do assassinato do próprio Bancroft, que escapou do mesmo graças a seus backups, mas que perdeu a memória das últimas 48h de sua vida.
Altered Carbon impressiona de cara por apresentar tantos conceitos e montar um esquema de cenário que deixaria os mais atentos espectadores perdidos e vai melhorando com o passar dos episódios, quando você vai entendendo a ligação entre todas as deixas de roteiro. O final da série te deixa boquiaberto por ligar tudo o que você viu até então e que pode até ter pensado que eram apenas coisas soltas, para desenvolver com mais temporadas. No quesito roteiro, a série só se perde um pouco nos dois últimos episódios, quando escorrega para o dramalhão, mas se sustenta bem em boas cenas de ação e resolvendo todas as tramas muito bem, só deixando o óbvio para uma possível segunda temporada.
Na arte, a série vai bem, mas peca pela repetição extrema de cenários e pouco esforço em ampliar o mundo de Kovacs. Mas os cenários que são construídos são muito bem feitos e colaboram bastante com a imersão do espectador no mundo cyberpunk de Altered Carbon. A direção de fotografia é espetacular e a escolha de ângulos e enquadramentos faz você esquecer de que está vendo uma série de TV. O enredo empolga, como já dito, até os dois últimos episódios, onde o dramalhão faz até os atores, que vinham bem, até então, derraparem bastante. É nos dois últimos episódios que Joel Kinnaman deixa de ser o cara frio, calculista e inteligente da temporada inteira, para se transformar num tremendo canastrão, mas não acho que isto comprometa a série, de uma maneira geral.
Vale a pena maratonar, para não se perder em detalhes complicados, que são constantemente retomados durante a série, sem novas explicações. É parada obrigatória para quem gosta de ficção científica, mais ainda para quem gosta de cyberpunk e, acredite, para quem gostou de “Lost”, é um prato cheio!
https://youtu.be/dhFM8akm9a4
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