Existe uma figura que sempre orbitou a cultura nerd/geek – O nerdola. Esse termo, há alguns anos, passou a ser usado para diferenciar o nerd (ávido consumidor e entendedor da cultura pop) da figura preconceituosa, reprimida e agressiva, que enxerga em qualquer sinal de diversidade um insulto.
Há algum tempo a figura do nerdola tem tido seus ataques de fúria e chiliques até cômicos, com qualquer mínima alteração ou diversificação étnica, regional ou de gênero em suas obras favoritas. Existem alguns grandes perigos nisso, e é sobre eles que vamos conversar hoje. Se prepare!
O caso que me é mais caro é a série do Prime Video, O Senhor dos Anéis: Anéis de poder. Se vocês não sabem, a obra de J.R.R Tolkien, é adotada por grande parte dos extremistas como “o modelo de heroísmo e honra” a ser seguido, quase como um manual sobre essas coisas.
Em 2019 o partido espanhol de extrema-direita Voz utilizou a imagem de Aragorn, vivido por Viggo Mortensen, numa propaganda política em sua conta no twitter, o ator condenou o uso de sua imagem (e do personagem) e apontou a pluralidade de raças e culturas no legendário de Tolkien.
A série baseada nos apêndices da obra de J.R.R Tolkien, que trata da Segunda Era, irritou nerdolas do mundo todo, por incluir personagens como o elfo Arondir (Ismael Cruz), a anã Disa (Sophia Nomvete), a rainha numenoriana Míriel (Cynthia Addai-Robbinson), todos de pele negra.
O vírus Stultus Nerdolae
Mas o que justifica essa insanidade, que inclui hate descontrolado à série, além de ataques ao elenco da produção? Bom, para entender isso precisamos ir um pouco mais a fundo em algumas questões que vão além da arte.
Todo movimento radical vem em busca de soluções mirabolantes para resolver problemas (supostos ou reais) de uma sociedade ou de um grupo. Em geral, essas soluções (simples e erradas) remontam a um passado idealizado, no qual as coisas era melhores e a sociedade tinha outros valores.
Na visão de grupos hostis à inclusão de outra etnias no casting de produções baseadas em obras consagradas, a diversidade “macula” as características originais dessas obras, características nas quais esses grupos mais extremos e preconceituosos se veem mais claramente representados.
É curioso pensar que alguém intelectualmente honesto possa defender a ideia de que em Arda (o mundo do legendário de Tolkien), num planeta inteiro todos os anãos, humanos e elfos sejam brancos e baseados no fenótipo europeu. Esse raciocínio exige um alto grau de contorcionismo mental.
Além disso, há aqueles que tentem buscar na obra de J.R.R Tolkien algum indício de que seria “proibido” haver personagens negros. Claro, eles falham miseravelmente, uma vez que o autor jamais deixou esse tipo de recomendação, nem insinuou isso em qualquer lugar.
Vamos falar da Galadriel?

Bom, outro ponto que enlouqueceu o nerdola em “Anéis de poder”, foi a descoberta de uma versão “porradeira” da elfa Galadriel. Primeiramente, é importante dizer que Tolkien menciona algumas vezes características guerreiras e atléticas na personagem, inclusive o faz por escrito.
Quem conhece mais a fundo o lore do mundo de Tolkien, sabe que os elfos recebem, em geral, dois nomes: um dado pela mãe, outro dado pelo pai. O pai de Galadriel deu a ela o nome “Artanis” (mulher nobre), já a mãe deu a ela o nome de “Nerwen” (donzela homem), por sua altura e comportamento.
É curioso como a análise nerdola sobre a obra não contempla falhas reais que, sim, existem, como questões de andamento; como o figurino estranhíssimo do núcleo de Numenor; algumas conveniências de roteiro, momentos anticlimáticos, entre outras coisas, que valeriam uma análise séria.
Mas a série é perfeita?

Quando deixamos de lado aspectos técnicos para olhar apenas para questões de escolha de elenco que em nada prejudicam a trama, o lore ou a construção da produção, fica claro qual é o ponto de incômodo do nerdola médio.
Os críticos mais ferrenhos dessas questões chegam a dizer que a produção “destrói” o legado de Tolkien. Ahn? A obra é basicamente construída à partir dos apêndices, o que significa que se baseia em eventos e citações vagas para construir uma narrativa, o que dá liberdade aos roteiristas.
Embora haja problemas de roteiro e de ritmo, e a série não seja perfeita, há vários momentos incríveis. Os núcleos dos anãos e dos pés-peludos, por exemplo, os efeitos visuais são um espetáculo à parte, além da nostalgia que dá aquela aquecida no coração. No geral, o saldo é positivo.
Esperamos que numa segunda temporada a história ganhe mais corpo e não caia em certas armadilhas como nessa primeira temporada, existe um mundo de possibilidades para elevar em muito o nível do elemento “contar uma história”.
Por fim, é importantíssimo dizer que não há como frear ou reverter o movimento da história. A sociedade se move, como um rio, sempre em frente. Embora isso enlouqueça a alguns, nós não estamos, nem vamos voltar ao século XVI, nem mesmo nas séries de temática “medieval”.