Aviso: Gosto muito do que o Snyder fez na DC e é uma pena (para mim) que sua visão para o universo não pôde ser completada. Também acrescento que não há nada de errado em filmes de ritmo lento e que focam primariamente nos diálogos à ação, mas o problema nisso é que quando você faz um blockbuster, precisa tornar o filme o mais atraente possível para o público. O leitor pode até argumentar que se curvar a isso é aceitar e estimular uma suposta falta de qualidade exigida pelo povão, mas, independente de nossa opinião a respeito disso, é assim que as coisas funcionam, o estúdio e os investidores querem dinheiro e é com esse objetivo que aceitam investir milhões num projeto, então não dá para ignorar que deixar o público satisfeito é um aspecto importante do sucesso. Também é importante ressaltar que não sou hater da DC (muito pelo contrário) e que este texto não é baseado numa opinião pessoal, até porque se fosse exclusivamente baseado na minha opinião, esse texto sequer existiria. Se estamos falando de sucesso, minha ou sua opinião pessoal são irrelevantes. Você precisa ser objetivo, o que envolve ignorar o que você acha e se focar no que a maioria pensa.
O site agregador de críticas Rotten Tomatoes já existe há anos, porém, sua fama surgiu de forma repentinamente assustadora, mas precisamente na semana de estreia de Batman v. Superman, no já distante ano de 2016. Eu conhecia o site bem antes desse fatídico acontecimento do universo cinematográfico da DC, e, foi justamente por conhecer o site, que a visão do tomate podre ao lado da porcentagem correspondente a aprovação do filme no Rotten Tomatoes me deixou de queixo caído. Não que eu estivesse certa quanto ao sucesso de BvS, mas com certeza eu não esperava a recepção negativa que de fato aconteceu, algo que surpreendeu quase todo mundo, na verdade.
O Rotten Tomatoes foi apedrejado, alvo de debates acalorados entre o nicho de fãs de super-heróis e se tornou manchete em diversos lugares, o que fez muito bem para o site no fim das contas. Desde então, o RT virou referência e sempre é base nas discussões que envolvem qualidade de filmes. A maioria de seus usuários se guiam pelo símbolo do tomate, que pode ser fresco se o filme tiver mais de 60% de críticas positivas, ou podre, se tiver porcentagem favorável de críticas inferior a este número.
No entanto, a porcentagem que acompanha os filmes é apenas uma informação correspondente à quantidade de críticas positivas, não é a “nota” real que o site atribui aos filmes. A “nota” verdadeira é o “average rating”, que se encontra um pouco abaixo da porcentagem.
No caso de Aquaman e Homem de Aço, uma olhada rápida em suas páginas no RT levam os leitores a concluírem que Aquaman teve uma “nota” de aprovação mais alta, tendo em vista que obteve 64% de críticas positivas e Homem de Aço obteve 55%. No entanto, um olhar mais cuidadoso vai revelar que na verdade os dois filmes tiveram praticamente a mesma recepção, com Homem de Aço tendo um “average rating” de 6.3/10 e Aquaman de 6/10.
Em outro site agregador de críticas, o Metacritic, (que é muito mais confiável ao meu ver, por permitir um meio-termo e por ser mais criterioso), as notas de Aquaman e Homem de Aço (que de agora em diante chamaremos apenas de MoS) são idênticas, 55/100 para ambos filmes.
Pessoalmente, acho que a experiência cinematográfica é complexa demais para ser definida por algorítimos com base em notas de críticos e acredito firmemente que a experiência pessoal é o mais importante, mas já que precisamos analisar a recepção crítica de uma forma mais objetiva, que considere a opinião geral como um todo, temos que recorrer aos números.
Assim, considerando que a crítica especializada não ficou lá muito impressionada com os dois filmes, como explicar as gritantes diferenças entre o desempenho de ambos nas bilheterias? MoS estreou em meados de 2013, com uma arrecadação excelente, de US$ 128 milhões ao longo do primeiro final de semana de estreia nos EUA. Para se ter uma ideia, apenas seis filmes da Marvel arrecadaram mais em seus respectivos primeiros finais de semana de exibição até agora, a saber: os três filmes dos Vingadores, Guardiões da Galáxia 2, Pantera Negra e Guerra Civil. Apesar da fama de “sem-graça” do protagonista, foi inegável que havia uma enorme interesse do público para um filme novo do Superman.
No entanto, o boca a boca que o filme gerou não foi tão bom assim e MoS apenas arrecadou US$ 291 milhões nos EUA e US$ 668 milhões mundialmente. Não foi um fracasso, mas vamos admitir que poderia ter feito muito mais, dado a excelente estreia. Na outra ponta se encontra Aquaman, o herói mais zoado da editora DC Comics, que estreou nos EUA com apenas US$ 67 milhões, (o que não chega a ser algo ruim, tendo em vista o final de semana ultra-competitivo, com mais outros 2 blockbusters estreando) e até o presente momento já faturou US$ 325 milhões nos EUA e US$ 1.108 bi mundialmente. Tudo bem que uns US$ 300 milhões vieram da China, mas ainda assim, tirando essa arrecadação, sobra uma bilheteria global respeitável, mostrando que o sucesso de Aquaman não dependeu unicamente do mercado chinês, como alguns chegaram a concluir. O filme já está há quase dois meses em cartaz. Vale lembrar que no período de dois meses, Esquadrão Suicida já havia arrecadado US$ 322 milhões. Sendo assim, pode-se afirmar que a arrecadação final de Aquaman nos EUA não só já é superior a de Esquadrão Suicida, como também ultrapassará a bilheteria americana de Batman vs. Superman em alguns dias.
Então, se no final das contas os críticos acharam ambos os filmes apenas ‘ok’, o que justifica a diferença no sucesso dos dois? Acredito que os motivos por trás de ambos os desempenhos estejam além dos defeitos técnicos que se costumam atribuir a MoS, que são o roteiro “confuso”, os cortes abruptos, o CGI de playstatation 2 e o excesso de flashbacks.
CGI vergonhoso é comum em muitos filmes e a gente releva se a história for boa; quanto ao tal do “excesso” de flashbacks, ele também estava presente em Aquaman, que, assim como MoS, abusou das interrupções para mostrar trechos significantes do passado de seu protagonista, algo que na minha opinião, não comprometeu ambos os filmes. Ao meu ver, a diferença no desempenho repousa principalmente nas escolhas criativas que Zack Snyder e James Wan adotaram para suas histórias. Segue uma lista delas:
Equilíbrio entre cenas de ação e diálogos
Se formos olhar mais de perto, vamos notar que os filmes de super-herói do Snyder compartilham semelhanças na forma como as cenas se organizam: possuem um início dinâmico e promissor que é seguido por uma hora de intermináveis cenas de diálogos para então se seguirem por mais 40 min de ação descontrolada. Os blockbusters bem-sucedidos de ação intercalam os dois tipos de cena ao longo de sua projeção, justamente para não deixar o público entediado.
Os diálogos intermináveis são cansativos porque privam o espectador da porradaria, que é algo que todos nós esperamos e torcemos para que aconteça várias vezes em um filme do tipo, porém, a ação não pode ser exagerada e tomar boa parte da projeção, pois a história não vai ter espaço para “respirar” e, consequentemente, o público vai ligar o foda-se para o que está acontecendo na tela, já que a ação soa vazia. Então, o equilíbrio é importante.
James Wan entende isso e as várias cenas de ação de Aquaman se intercalam perfeitamente com os momentos nos quais os diálogos são necessários, apesar do filme pecar um pouco e acabar durando uns 10 min a mais do que deveria, o que não compromete a experiência. O resultado é um filme divertidíssimo, que sabe usar o tempo de tela para desenvolver o protagonista e nos fazer criar afeto por ele.
Por sua vez, Homem de Aço começa bem, mas no geral, a primeira hora de filme é tida como um marasmo para a maioria das pessoas e a segunda metade acaba não sendo muito melhor porque a ação desenfreada (embora pertinente) não consegue evocar um sentimento intenso no público justamente pela primeira hora “enche-linguiça” do filme. No final, Homem de Aço é um longa que, apesar de ter um começo, um meio e um fim definidos, não deixa de se livrar da sensação de um filme que é no máximo “assistível”, pois as coisas demoram para acontecer e quando acontecem, você meio que não se importa muito, mas ei, as cenas de ação são legais.
Em Batman vs. Superman, esses momentos “enche-liguiça”, ou “bolsões” de tédio, se repetem com mais intensidade ainda, indicando que esta é uma característica do Snyder, de fato, e não uma intervenção do estúdio.
Acredito que o maior problema que acentua a sensação de que o Homem de Aço é um filme arrastado é o fato de que quase tudo parece sem alma. Clark se arrasta de lá para cá sempre insatisfeito com a sua realidade; realidade esta, aliás, que se apresenta de forma sombria e verossimilhante. Além disso, Snyder erra ao focar mais no alienígena cheio de dúvidas do que no lado humano de Clark Kent, algo que só contribui para a falta de empatia do público em relação ao personagem. Tudo isso nos leva aos próximos tópicos:
“Realismo” e seriedade em filmes de Super-Heróis funcionam melhor como exceção, não como regra
A galhofa é marca registrada dos quadrinhos de super-herói, sendo assim, é natural que esta característica esteja presente também nas adaptações para o cinema e/ou a TV. Devido ao fato dessas divertidas histórias retratarem basicamente pessoas combatendo o mal enquanto usam fantasias, o público sempre se deixou levar pelo ridículo e abraçou a galhofa nessas produções, até que os anos 2000 chegaram e Bryan Singer e Christopher Nolan decidiram tentar algo diferente no gênero, inserindo enredos mais complexos e dilemas maiores para seus personagens centrais.
Vale notar que X-Men, obra que Singer resolveu adaptar, é essencialmente uma metáfora sobre preconceito, porém, uma adaptação séria de personagens de quadrinhos de SH para o cinema era algo totalmente inédito na época. No caso de X-Men, a seriedade não se mostrava apenas nas metáforas, mas em todos os aspectos técnicos do filme, tudo evocava uma aura cruel e realista. O filme foi um sucesso de bilheteria e a abordagem realista de Singer continua presente nos filmes da franquia até hoje, ainda que desgastada. A visão do diretor atualmente faz mais mal do que bem à franquia, que precisa urgentemente ser repaginada, mas isso é assunto para outro texto.
Já Nolan, por sua vez e ao longo de três filmes, colocou o Batman no centro de uma reflexão sobre heroísmo, enquanto esvaziava qualquer sinal de fantasia próprio dos quadrinhos: Ra’s Al Ghul agora não é um indivíduo que existe há centenas de anos graças às águas de um poço mágico, agora é um título transmitido a cada novo líder da Liga dos Assassinos; toda a força do Bane vem apenas de seus músculos e não do veneno; Gotham não é um lugar com ares sombrios, mas uma grande cidade americana como qualquer outra; o rosto do Coringa não é branco, apenas maquiagem e Selina Kyle nunca é chamada de Mulher-Gato.
Nolan tentou ao máximo equilibrar fidelidade ao material original e realismo, assim como Singer tentou fazer nas suas histórias dos X-Men e como todos sabemos, foram bem-sucedidos na empreitada, o que influenciou uma série de adaptações futuras tanto para a TV, com as séries da Marvelflix e Arrow, por exemplo, bem como adaptações para os cinemas, especialmente as da DC.
Não vejo nada de errado em histórias de super-heróis serem sombrias e realistas. Isso já aconteceu várias vezes nos quadrinhos, não é errado que façam filmes e séries com essa característica também, mas acontece que o problema de uma adaptação “realista” é que ela não serve para qualquer personagem, o que foi algo que a DC aprendeu à duras penas nos últimos anos. É inevitável que alguns personagens pareçam deslocados e até mesmo patéticos num universo “real”, seja pela natureza de suas habilidades, seja pelo seu universo em si.
Digo “patético” porque outro problema que o tal “realismo” traz é a dificuldade de suspensão de descrença, algo que é vital para a experiência de ver um filme como este. Ou seja, você precisa levar aquele sujeito vestido de morcego a sério; você precisa acreditar que aquela heroína que vem de uma ilha de amazonas imortais (eu sei) tem um laço que obriga as pessoas a dizerem a verdade; precisa crer que aquele outro herói, que fala com peixes, é um rei que controla os mares com seu tridente e por aí vai. Convenhamos, estimular a suspensão de descrença do público em uma abordagem realista de um material original que tradicionalmente é conhecido pela natureza absurda de suas histórias é algo desafiador, e, o fato de Nolan ter conseguido o efeito desejado sem descambar para o brega (na maioria da vezes, pelo menos) só mostra o seu talento. O mesmo vale para o Singer.
Além disso, a seriedade nos filmes de SH só é interessante quando abordada pontualmente. A partir do momento em que isso vira a regra, esses filmes se tornam esvaziados de qualquer senso do fantástico, que é a alma de uma história de super-herói. Sem essa fantasia para nos apegar, suspender a descrença se torna quase impossível e aí aquela visão de um fantasiado andando pela cidade e batendo nas pessoas não nos convence mais. O Batman do Nolan foi interessante, mas só permaneceu assim porque existiu de forma isolada, funcionando apenas como um olhar pessoal do diretor sobre o personagem.
Diante do sucesso do Batman do Nolan, se tornou comum a tentativa de inserir alguma complexidade nos enredos também, misturada ao clima realista. O problema na junção destas duas características em filmes do gênero é que isto exige competência extrema do diretor e dos roteiristas, caso contrário, a tentativa de trazer complexidade a história resulta ridícula e brega, no sentido ruim da palavra mesmo. Quando eu digo brega no “sentido ruim”, me refiro àquele tipo de brega que tem vergonha de ser o que é, aquele “brega” que se esconde atrás de uma faceta aparentemente madura, forçando uma complexidade que não existe. Algumas pessoas podem se deixar levar por isso, mas o público em geral não engole esse tipo de coisa.
Aquaman e Mulher-Maravilha são bregas e galhofas até o talo, mas nós não nos importamos com isso, muito pelo contrário, nós abraçamos esses personagens e seus universos porque existe honestidade na proposta. Patty Jenkins e James Wan em nenhum momento tentam inserir alguma filosofia de boteco em suas histórias, ambos não têm medo de soarem absurdos e não têm vergonha de falar coisas como “eu acredito no amor”. Dizer isso significa dizer que eles não teriam competência para abordar temas mais densos em seus filmes? Lógico que não, apenas digo que Wan e Jenkins são fiéis à natureza dessas histórias, o que é algo que no fim das contas beneficia as adaptações que fizeram, já que não há necessidade de explicar absurdos. As coisas apenas são assim.
Falando em explicar absurdos, um dos problemas dos filmes do Nolan é exatamente esta necessidade de arrumar uma explicação racional para tudo. Nas HQs essa necessidade não existe, as coisas são assim e pronto. Tentar explicar absurdos só enfraquece a suspensão de descrença na história, porque o espectador (ou leitor) é induzido pelo lado realista do filme a questionar certos aspectos da história de forma racional. Quando você aceita a galhofa generalizada, não vai perder tempo se questionando porque tem um polvo tocando tambor no filme, por exemplo. Foi mais fácil aceitar isso em Aquaman do que aceitar que Bruce Wayne quebrou uma vértebra e se curou totalmente sem precisar de hospital em O Cavaleiro das Trevas Ressurge. Notaram o problema?
Quanto ao Snyder, apesar do realismo em MoS ter funcionado de alguma forma, isso criou situações bizarras aqui e ali, que seriam mais aceitas se o filme não se levasse tão a sério, como por exemplo, a cena em que Lois e Clark se beijam diante dos escombros (e das prováveis centenas de mortos) de Metrópolis ou a falta de consequências depois da destruição da cidade. Muitos que gostaram de MoS (incluindo eu mesma) reclamaram da falta de coerência dos críticos, que aceitam destruição nas animações e nas HQs, mas não aceitam no cinema. Depois de brigas intensas na internet, finalmente entendi o porquê: MoS tem uma proposta realista, ao contrário das animações e da maioria das HQs do Superman, o que torna mais difícil ignorar uma catástrofe como aquela. (Quem detesta o Snyder provavelmente entendeu isso bem antes de mim, mas ok).
A cena da morte do Zod foi outra que causou polêmica entre os fãs e, de novo, os críticos da cena diziam que Superman nunca mataria ninguém e blá blá blá, enquanto os defensores justificavam que o roteiro pedia por isso. Acontece que o motivo real da polêmica não é bem o Superman ter matado, mas a forma como o personagem foi retratado de uma maneira geral. O Superman de Christopher Reeve também matou o Zod anos antes, em Superman II (na versão do Donner, ele não mata, mas isso é outra história) e literalmente ninguém se importou com aquilo. Qual a diferença? A morte do Zod em Superman II tem todo um ar de heroísmo, tem até a música-tema do John Williams ao fundo. Superman mata o Zod, Lois mata a comparsa dele, todos vão felizes para suas casas e fim. Em MoS, o momento teve contornos bem mais dramáticos e, ao mesmo tempo em que a cena é heroica, ela coloca a morte do Zod como uma questão importante para o personagem, algo que naturalmente chamou a atenção do público para o ato em si. Se a gente for olhar de perto, a indignação coletiva de alguns fãs que se seguiu a esse momento não foi bem por causa da morte do Zod, mas porque a cena representa o ápice de uma característica do novo Superman que vinha incomodando alguns dos fãs ao longo da projeção: uma certa melancolia e falta de amor pelo heroísmo, o que nos leva ao próximo tópico.
Amor ao heroísmo X Ayn Rand
Sim, eu entendi o que a cena da morte do Zod significou, inclusive me coloco ao lados de seus defensores quando apontam que o momento faz sentido dentro do longa. Faz mesmo e não acho errado ele ter matado o vilão. O problema é que, de forma geral, o Superman é retratado nesse filme como uma criatura que tem um certo desgosto por si próprio ao ponto de se considerar um amaldiçoado, de certa forma. Ao contrário das encarnações passadas, ele cresceu cheio de amarras. Jonanthan, seu pai, morre de medo que o filho seja descoberto e rejeitado por ser diferente e incute na cabeça do menino que precisa esconder seus dons para que possa viver em paz, longe dos humanos, cujo medo e desconfiança poderiam trazer dor ao seu filho. Somente depois de adulto, Clark começa a se livrar dessas amarras para tentar entender a sua posição no mundo (quando finalmente entende, não fica muito melhor).
O fato é que o público gosta de ver os super-heróis sendo super-heróis, é para isso que as pessoas pagam ingressos e é isso que conquista novos públicos. Consegue imaginar uma criança se encantando pelo Batman e pelo Superman em BvS?? Difícil. Qual a graça em acompanhar filmes de super-heróis que estão sempre carrancudos, mal falam e detestam o que fazem?
Voltando a MoS, é praticamente um consenso que as cenas mais interessantes são as que envolvem salvamentos, como a da plataforma de petróleo ou a do acidente de ônibus, ou até mesmo o final da luta em Smallville (que culmina com os soldados tratando-o como o herói que é) e, claro, a cena do primeiro vôo, onde ele brinca com seus poderes e se vê em paz pela primeira vez. Não é a toa que esses momentos se destacam. São os únicos que retratam Clark de forma mais empática, nos permitindo criar uma simpatia por ele. Infelizmente, esses momentos se perdem na clima geral do filme.
Aquaman, por sua vez, não quer relação alguma com Atlântida, mesmo sendo alertado por Mera que muitas vidas estão em jogo. Assim como Clark em MoS, ele vive isolado e não tem a menor pretensão de se tornar um super-herói. Porém, ao contrário de Clark, toda a vez que alguém entra em perigo, ele assume a tarefa de salvá-la com enorme satisfação. Arthur não liga se vão tratá-lo mal depois, não liga se vão ter medo dele. Existe alguém em perigo e ele precisa ir até lá. Esse é o espírito que as pessoas gostam de ver em um filme de super-herói. Nem mesmo o Batman sombrio e realista do Nolan tinha desgosto pelo que fazia. Todo filme de super-herói bem-sucedido é protagonizado por um herói que se maravilha com as suas habilidades especiais (quando as tem) e que, mesmo tendo dúvidas sobre si, sempre vai colocar o altruísmo acima de tudo sem pestanejar.
“Bom, e o que Ayn Rand tem a ver com tudo isso?” O leitor se pergunta.
Ayn Rand foi uma escritora que viveu no século XX, conhecida por sucessos de venda como A Nascente (1943) e Quem é John Galt? (1957) e foi através desses romances que ajudou a definir uma corrente de pensamento, chamada “filosofia do Objetivismo”, que além de ser uma crítica ao papel centralizado do Estado, também pregava o egoísmo como uma virtude. Na visão de Rand, o egoísmo significa uma preocupação com os interesses próprios de cada um, ou seja, o homem idealizado coloca seus interesses acima dos interesses coletivos. Naturalmente, os protagonistas dos romances de Rand refletem isso e são também figuras idealizadas, super-homens: mais ricos, bonitos e inteligentes do que a maioria e fazem enorme diferença na sociedade através do que fazem.
Não é segredo para ninguém que Zack Snyder é um grande admirador do objetivismo de Ayn Rand. O diretor até planejava fazer uma adaptação de A Nascente há um tempo atrás (sem dúvida ele se identificou com o protagonista), mas acabou não vingando.
Enfim, como fã das ideias de Ayn Rand, não é de se admirar que Snyder tenha se baseado nelas para fazer a sua própria versão do Superman e a partir do momento em que você notar esta influência, várias cenas que pareciam sem sentido, ou muito erradas, em MoS e BvS, passam a ganhar alguma lógica (ainda que não concorde com ela).
Em MoS, o objetivismo é mais presente em Jonathan do que no próprio Clark. Para o Kent-pai, não há motivos para o filho arriscar o próprio bem-estar pessoal, mesmo que vidas de terceiros estejam em risco. Clark passa o começo de sua vida vivendo um conflito interno entre o que deseja fazer: ajudar o próximo, e os ensinamentos de seu pai, que buscavam poupá-lo de qualquer rejeição por ser diferente. Quando a vida de Jonathan entra em risco, Clark é forçado a uma escolha: ou ele abre mão da tranquilidade e vai salvar o pai, ou coloca seu bem-estar individual acima de tudo, custe o que custar (Radical, não é mesmo? Mas era exatamente isso que Ayn Rand defendia). Jonathan se recusa a ser salvo, sacrificando a própria vida para que o filho entenda de uma vez por todas que prejudicar a si próprio em benefício do outro é errado.
Esse ensinamento controverso é suavizado pela presença de Jor-El, que apresenta um outro ponto de vista a Clark/Kal-El, diametralmente oposto ao que seu pai adotivo ensinou, enfatizando o otimismo em relação às pessoas e a sua figura como protetor e guia. De novo, Clark volta aos questionamentos com os quais cresceu, até que finalmente decide abraçar a humanidade e expulsar os kryptonianos da terra. Adoro a frase ambígua ao final do filme dita pela Lois: “Bem-vindo ao planeta”, indicando que o Superman finalmente estava formado.
Na época eu defendi a abordagem de Jonathan Kent, mas porque tive um entendimento equivocado do seu real significado. Achei mesmo que a intenção de Snyder era retratar Jonathan como um ser falho, um pai amoroso que prejudicou o filho por excesso de proteção. Mas agora, sabendo do seu apego ao objetivismo, sou forçada a concordar com os detratores do diretor. O altruísmo não só é marca registrada do Superman, como também é o arquétipo básico de qualquer super-herói, é o que o torna atraente. Tirar isso dele foi um erro gigantesco, tirou qualquer possibilidade do seu Superman se tornar querido pelo público.
Essa abordagem objetivista do personagem se intensificou mais ainda em BvS. Clark mergulha no mesmo conflito do primeiro filme. A diferença é que agora ele sente na pele o ódio das pessoas e, por isso, sente também que é melhor se afastar, porque não é bem-vindo e porque está sendo injustiçado. Dessa vez, com Jonathan morto, coube à Martha Kent repetir para o filho que ele não é obrigado a aturar esse tratamento porque “não deve nada a ninguém“. Então, na infame cena da montanha, Clark finalmente entende que o heroísmo, afinal de contas, é tornar o mundo um lugar melhor para as pessoas que ele ama, que no caso é a Lois. Ou seja, se tradicionalmente o Superman faz o bem porque simplesmente é o certo, na versão do Snyder, ele faz o bem porque isso vai contribuir de alguma forma em um lugar melhor para a sua amada existir (“Você é o meu mundo“).
O resultado é que de um lado tem o Snyder com sua visão pessimista de tudo, nos apresentando a um herói quase mudo, que se lamenta o tempo todo por ser diferente e que por isso é distante e pouco carismático. Já do outro lado, temos o Aquaman de James Wan: às vezes alegre, às vezes soturno (ressentido até), mas que não pensa duas vezes quando um inocente tem a vida ameaçada. Qual dos dois é mais atraente de se acompanhar? Pois é.
Eu defendi a visão de Snyder como correta muitas vezes antigamente, criticava e dificuldade do público aceitar uma nova versão, de estarem sempre apegados a mesma abordagem. A verdade é que, de certa forma, esse pensamento continua correto, até porque um filme pertence ao seu diretor. Snyder estava apenas exercendo sua liberdade enquanto artista (sim, ele teve liberdade). Porém, quando este personagem é uma marca conhecida no mercado e protagonista de um blockbuster que tem a missão de durar vários filmes, já não dá mais para sair por aí inventando a roda. Tem que seguir com cautela e isso envolve dar atenção ao que o público deseja. Não é que o povo seja burro por não gostar do Snyder (se pensa desse jeito, o idiota deve ser você), mas o cara simplesmente não tem o perfil para um filme que deveria atrair todos os públicos, principalmente quando é filme de super-herói. Esses filmes precisam de leveza, humor e precisam também saber rir de si mesmos, sem medo de soar cafona e, claro, sem esquecer do bom e velho heroísmo. Ou seja, precisam de tudo o que o Snyder não faria. No fim das contas, sua saída é vantajosa tanto para ele, quanto para a WB.