O terceiro capítulo da saga já dura 13 anos e tem feito sucesso entre a população amedrontada e os extremistas por todo o país
O contexto
O ano era 2007. O Brasil vivia em uma atmosfera muito diferente da que vive nos dias de hoje. No entanto o tema da segurança pública já fazia sucesso entre alguns grupos da sociedade brasileira (mas vinha crescendo no senso comum das discussões de bar, filas de hospital e pontos de ônibus). Como disse Mano Brown, certa vez em entrevista ‘O povo passou a conquistar as coisas à partir de 2003 e, depois de conquistar, quis polícia para “defender” essas coisas’.
Nesse contexto é lançada a película de José Padilha. O filme já era um sucesso estrondoso mesmo antes de seu lançamento nos cinemas, devido a milhões de cópias piratas comercializadas pelos camelôs nas calçadas de todo o país. A venda de cópias clandestinas não impediu que as bilheteria fosse digna de um fenômeno. As frases e jargões de Capitão Nascimento e sua turma se tornaram parte do vocabulário de jovens, adultos e até crianças, e mais do que isso: se tornaram parte do imaginário popular do brasileiro.
Mas e aí?
Segundo o diretor José Padilha, suas intenções com o filme não eram as de incentivar o punitivismo penal e a ânsia por um estado policial (não há motivos para crer que o cineasta esteja metendo o louco em relação a isso), mas fato é que a mitologia do filme intensificou e, mais do que isso, criou uma nova onda de ideias punitivistas e ineficazes sobre como enfrentar a criminalidade. Foi o renascimento do “Bandido bom é bandido morto” e da ideia de que os agentes de segurança têm carta branca para abordar, julgar e executar segundo suas próprias regras, saca?
Nascimento, que segundo Padilha, deveria ser uma crítica à brutalidade policial e aos problemas do sistema de segurança acabou, na mente do brasileiro médio, se tornando o ideal de heroísmo e boas práticas. Imaginem só: o sujeito conseguiu comprar um carro, construir e mobiliar sua casa; isso depois de crescer sendo bombardeado por programas de sensacionalismo policial e propaganda anti-pobre, não é difícil e imaginar que esse cara viva apavorado e que apoie qualquer coisa que o proteja do suposto “Mad Max” em que o Brasil teria se transformado.

Tropa de Elite 2 – Agora o inimigo é outro
O filme saiu, fez sucesso inacreditável e o diretor percebeu que sua ideia havia sido completamente mal interpretada (considerando que as intenções dele realmente foram as que ele alegou ter à epoca). Era hora de fazer algo sobre isso: em 2010 é lançado “Tropa de Elite 2”, um novo e também estrondoso sucesso, agora abordando as instâncias mais sujas da corporação e do governo, além da relação entre eles e como ela afeta a sociedade. Uma história que parece até um documentário, tamanho o incômodo que causa, mas o estrago, com ou sem intenção (acredito que sem) já havia sido feito.
Os primeiros spin-offs
Logo nos anos seguintes, os spin-offs de Tropa de Elite começaram a surgir na vida real. Juízes super-heróis, policiais bonitões, delegadas metidas à Capitã Marvel, candidatos usando nomes de “Capitão Fulano”, “General Sei-lá-o-quê”, chegando ao absurdo do “Deputado-Pastor-Sargento” (dêem um google nisso, sério!). A ideia da violência policial indiscriminada e supostamente justificável já estava disseminada pela sociedade. Assim como um vírus, sua transmissão foi rápida, nociva e causou morte e destruição, sobretudo entre pobres e negros.
A consolidação da franquia
Muita coisa mudou no país nos últimos 13 anos, com um acirramento cada vez mais intenso de ânimos e o aprofundamento cada vez maior da mitologia da violência e do culto à morte. Nesse ambiente, os capitães Nascimento (que sempre existiram no Brasil) se multiplicaram numa metástase socialmente mortal.
A legitimação da morte como política pública, reforçada em grande medida pela interpretação enviesada de uma obra que, embora de ficção, trouxe elementos absurdamente reais do cotidiano periférico e das atrocidades e abusos impostos aos mais pobres se mantém até hoje.
Episódios lamentáveis como o ocorrido (na semana anterior à publicação deste artigo) no litoral paulista tendem a ser lidos como ações necessárias, justificáveis e positivas, realizadas em nome do “cidadão de bem”. Além da morte de inocentes (uma vez que essas vinganças tendem a escolher alvos a esmo nas comunidades periféricas de todo o Brasil), há também o pânico instalado nas mentes dos trabalhadores que vivem nas regiões pobres e nas quais há total abandono por parte do poder público.
Nós não veremos o fim desse tipo de ação macabra tão cedo, mas é importante que se faça uma leitura mais séria a respeito dos fenômenos da indústria cultural e de seus efeitos e desdobramentos na sociedade, sobre os reforços positivos e negativos e as possíveis interpretações e instrumentalização de certas obras para fins, muitas vezes, nefastos. A cultura é influenciada e influencia a sociedade. Sendo assim, cada um de nós precisa entender aquilo que consome e digerir as obras de forma crítica e, dentro do possível, defender a melhor interpretação em relação a elas.