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The Boys e o curioso caso de não entender uma sátira… e nem uma paródia

The Boys é uma série conhecida por satirizar o gênero de super-heróis, contudo até que ponto ela realmente funciona?

The Boys está em sua quarta e penúltima temporada, contando a história do confronto do grupo de mesmo nome contra os super-heróis que controlam esse mundo sendo comandados pela empresa privada Vought. E nessa temporada, já vemos a visível mudança de opinião do público com os episódios já lançados.

Nota da quarta temporada de The Boys atualmente no Rotten Tomatoes.

Contudo, o que levou a série a ter uma mudança tão drástica de opinião nesse ano? E acima disso, o que levou as pessoas a esquecerem sobre o que a série se tratava esse tempo todo.

Construindo uma sátira

Determinados conceitos mudam conforme o tempo, mas a sátira permanece sendo uma composição narrativa que busca ridicularizar ou ironizar determinadas instituições ou costumes. Um bom exemplo é o filme “O Grande Ditador” de 1940 onde o ator Charlie Chaplin busca fazer piada da figura de Adolf Hitler.

O Grande Ditador (1940)

A origem da “sátira” é nebuloso, contudo o poeta Epicarmo que viveu durante o século V, é considerado um dos principais fundadores da ideia, onde na época elaborava textos que ironizavam os intelectuais da época.

Com o passar do tempo, a composição narrativa foi tomando forma e na França durante o renascimento, o escritor François Rabelais surgiu através do pseudônimo de Alcofribas Nasier utilizando de seus textos para ironizar costumes e tradições da época.

E no Brasil nós tivemos grandes escritores que usaram da sátira para elaborar seus textos. Dentre eles temos Gregório de Matos Guerra que durante o movimento barroco, usou de seus textos para criticar a administração colonial portuguesa da época.

E chegando no período atual, nós temos o autor Garth Ennis que publicou entre 2006 e 2012 a história em quadrinhos The Boys que recontava a história dos super-heróis através de uma ótica escatológica, cômica e também satírica.

O ódio a um gênero

Garth Ennis é um autor extremamente prolífero em sua carreira. Tendo sua ascensão durante a intitulada “Invasão Britânica” nos EUA que trouxe diversos escritores para trabalhar no selo Vertigo, ele foi responsável por títulos como Preacher, os quadrinhos mais renomados do Justiceiro, Crossed e entre outros.

E ao ler outras obras do autor e assistir algumas de suas entrevistas, percebemos uma opinião peculiar ao gênero de heróis. Em uma entrevista ao Los Angeles Times durante o lançamento da série, ele falou sobre como o gênero de super-heróis estragou não somente a TV e Cinema, como também os quadrinhos. Durante a entrevista ele também comentou o contexto da criação desse universo.

“Bush e Cheney tinham acabado de voltar ao poder, o banho de sangue no Iraque estava fervendo e o furacão Katrina devastou Nova Orleans”, continuou ele, referindo-se à temporada 2006-2008 do quadrinho. “Então eu estava escrevendo sobre a corrupção corporativa do governo, o abuso de poder e o abandono das pessoas comuns. Em termos de ficção, os tipos de protagonistas que tínhamos na época eram Tony Soprano e Vic Mackey – homens maus que nos guiavam por um mundo mau.”

Tendo essa visão em mente, já percebemos a visão do autor sobre o gênero e que em sua máxima, a HQ de The Boys é um ato não somente contra um gênero, mas também o que ele transmite através das empresas privadas que os dominam.

“The Seven”, a equipe de super-heróis no quadrinhos The Boys.

Particularmente como um leitor antigo de quadrinhos, eu nunca gostei muito da HQ apesar de ter lido até o final sua história. Em diversos momentos em minha opinião ficou visível um exagero em determinados momentos onde há o “absurdo pelo absurdo”.

Só que durante a leitura, você tem a sensação de que Ennis estava digitando praticamente quebrando seu teclado ou sua caneta, esboçando o ódio ao escrever essa história de acordo com a mensagem que ele queria passar. Afinal de contas, The Boys nunca foi sobre heróis, mas sobre produtos.

Traduzindo uma história para outra mídia

Em 2019 enfim temos a adaptação da HQ chegando na Amazon Prime e surpreendendo a todos tendo uma ótima audiência, atuações incríveis e uma produção de extrema qualidade. Tendo o comando do showrunner Erik Kripke que criou também a série “Supernatural”,  a história de Ennis chega ao grande público.

Em 2020 o showrunner deu uma entrevista ao site brasileiro Jovem Nerd, onde comentou alguns fatores que ele queria explorar na série.

Eu estava realmente interessado em explorar o nacionalismo, a supremacia branca e a xenofobia que acontecem nos Estados Unidos agora. Sinto a obrigação de mostrar de verdade o mundo em que vivemos, com essa intersecção de autoritarismo e celebridades, que acontece muito agora.

O sucesso da série e seu humor ácido fizeram até mesmo ela receber um spin-off chamado Gen V, e desde o princípio as intenções do criador estavam claras. Só que apesar de toda essa jornada até aqui, o que fez determinado público da série idolatrar personagens como Homelander e até mesmo acusar a série de “lacração” e é claro, de fazer parte da “cultura woke”?

Porque algumas pessoas não entendem?

Ao mesmo tempo trágico, é cômico olhar para algumas pessoas na internet e perceber como elas encaram histórias como a de The Boys com um olhar de adoração. Vemos pessoas reclamando do personagem Frenchy por se relacionar com um homem, sendo que nas temporadas anteriores sempre houve confirmações sobre sua sexualidade.

Uma parte do público possui uma adoração por personagens como Homelander e usam a típica frase “claramente ele sou eu”. Enquanto isso temos piadas sendo feitas com a aparência da atriz de Starlight e do outro lado a sexualização da Firecracker e frases como “eu consertaria ela”.

Existe um problema contemporâneo em sátiras que a tornam problemáticas. Quando o alvo de críticas se torna uma piada, o público que antes se sentiria atacado, agora acha graça. Basta ver casos como o dos comediantes que invadiram um stand-up fantasiados de Homelander indo contra a “lacração” recentemente.

Construir uma sátira pode ser tão delicado quanto fazer uma cirurgia, e as vezes a operação pode dar errado. Um artigo do site The Guardian falando sobre a “morte” da sátira, há uma fala bem interessante que pontua esses problemas.

“O que aprendi ao longo de 30 anos fazendo isso é que a sátira não funciona. Tem o efeito oposto. Nossa indignação se transforma em euforia e piada. É uma válvula de escape. Eu nunca suportaria Christine e Neil Hamilton, mas então você olha para eles, e eles são engraçados, e você pensa, ‘Neil… ele é incrível.’

Basta olhar para o que ocorreu durante o período político no Brasil. Tivemos a figura do ex-presidente de extrema direita Jair Bolsonaro se tornando uma figura cômica, até o ponto de que isso se tornou sua maior arma para atrair eleitores.

E no final…

Apesar de tudo, “The Boys” mantém a qualidade das temporadas anteriores. Confirmado que terminará na quinta temporada, a divisão de público deve continuar devido à estrutura da audiência, apesar do showrunner se posicionar contra esses pensamentos.

Quando nos deparamos com essas figuras, resta-nos destacar os pontos que essas obras criticam. Homelander é tratado como uma criança que só quer atenção; O Profundo é patético e submisso. As obras de ficção, em sua maioria, refletem a realidade.