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Crítica: O Sacrifício do Cervo Sagrado | Assista se quiser ficar nervoso

Um filme para deixar sua tensão e seu nervosismo ao limite!

Faz pouco menos de duas horas que saí da sala de cinema, mas esta tragédia já me deixou marcas e meu coração, que palpitou freneticamente no terceiro ato deste filme, ainda não permite que meu peito pare de ressoar suas batidas. Dizem que ninguém faz tragédias como os gregos, certo? E o grego Yorgos Lanthimos, no quinto filme de sua carreira, resolveu adaptar, brilhantemente, uma das mais famosas para a grande tela.

Que tragédia?

O nome do filme, “O Sacrifício do Cervo Sagrado”, faz referência à obra “Ifigénia em Áulide”, de Eurípedes. A peça conta a história de Agamenon, que, tendo sacrificado um cervo sagrado, pertencente a Ártemis, no passado, vê sua embarcação presa numa calmaria (os ventos pararam), por ordem da deusa. Para que os ventos retornem e os gregos possam dar prosseguimento à viagem para o ataque a Troia, Agamenon deve sacrificar sua filha, Ifigénia. O conflito da peça, que foi terminada por Eurípedes no ano de sua morte e encenada apenas um ano depois, entre Agamenon e Aquiles sobre o sacrifício da jovem Ifigénia, é repetido na “Ilíada”, de Homero (tragédia que tornou a guerra de Troia famosa, do “calcanhar de Aquiles” e tudo mais).

E o que isso tudo tem a ver com o filme?

“O Sacrifício do Cervo Sagrado” conta a história de Steven Murphy (Colin Farrell, sensacional), cardiologista que, anos atrás, comete (ou não, o filme não deixa claro o real responsável) um erro em uma cirurgia e mata o pai do jovem Marty (Barry Keoghan que, no início, chega a irritar com sua atuação robótica, que vamos entendendo no transcorrer do filme), que lança ao médico uma maldição: Sua esposa, Anna (Nicole Kidman, que não envelhece, e tem neste um de seus melhores papeis da vida), e seus filhos Kim (a talentosíssima Raffey Cassidy) e Bob (Sunny Suljic, um pouco abaixo dos demais) morrerão aos poucos (como? Assista ao filme. Tem uma sequência específica de fatos, mas, depois, se quiser a referência, procure pelo quadro “Christina’s World” – que, modéstia à parte, este que vos fala viu ao vivo, no MoMA de Nova Iorque -, de Andrew Wyeth), a não ser que Steven escolha matar um deles com suas próprias mãos. Olho por olho, dente por dente.

Mas e aí?

O filme começa devagar. Esque, que vos escreve, chegou a pensar “droga, vou ter que falar mal de mais um”, porque a atuação robótica de Keoghan (o bom moço de Dunkirk) e sua pouca sintonia com Farrell lembra más atuações de curtas universitários baseados em diálogos. Mas, aos poucos, você percebe que o incômodo gerado nas cenas em que os dois interagem é proposital e lembra, graças ao grande silêncio no storytelling e as ações pontuais da trilha musical, que se restringem a upsounds de tensão e um violino arranhado (Leit Motif dos encontros) e que lembram filmes tão perturbadores quanto, como “Elefante”(Gus Van Sant, 2003) e “De Olhos Bem Fechados” (Stanley Kubrick, 1999, sem fazer referência à presença de Kidman nos dois filmes).

Outra coisa que lembra “Elefante” é a frieza com que o filme é levado e quase nenhum pieguismo com que o amor no ambiente familiar de Steven é mostrado. É uma família plenamente funcional, com problemas e virtudes como qualquer outra família. Um casal que se ama e tem suas loucuras e dois filhos que têm vidas plenamente confortáveis e regulares, financiadas por seus ricos pais. Nada de absurdamente errado, até a interação de Marty, dois anos depois da morte de seu pai, com quem Steven vinha se encontrando e tutorando, provavelmente por culpa, havia seis meses. Marty se insere nas entranhas da família de Steven, que só percebe o comportamento psicótico do garoto quando vê seu núcleo familiar ameaçado por artimanhas de Marty.

O que se questiona?

Questiona-se no filme a culpa. Tanto a interna, vivida pela personagem de Farrell, quanto a externa, que discute o quão grande é um erro (no caso, uma morte sem dolo) e o que se pode ou não pagar por isso. O quão inocente é uma vingança, o quanto podemos ser cruéis, quando vemos uma situação sem nos colocarmos no lugar dos outros envolvidos. Steven não é santo, ninguém (nem o filme) nunca disse isso, mas, também, não é um monstro. Ele ama sua família como qualquer um de nós e é muito competente em seu trabalho, também. Mas, em seu passado, pode ter cometido um erro e talvez devesse pagar por isso, mas isto não é uma verdade absoluta. Ele toma conta de Marty quase como se fosse seu próprio filho, talvez por culpa, mas talvez por pena, uma vez que o garoto ficou órfão de pai. Mas ele não abdica de sua família. O filme chega a insinuar uma preferência do médico por sua filha, enquanto sua esposa “mima” mais o menino, mas isto não é algo que acontece em qualquer família? Mas Steven demonstra seu desespero quando as coisas começam a desmoronar.

Mas e Marty? E seu comportamento psicótico, demonstrado a conta-gotas, até que percebemos o quão doente o garoto é. E sua mãe (vivida por uma estranhíssima Alicia Silverstone) está entregue e deprimida, mostrando um núcleo familiar destruído e oposto ao vivido do outro lado.

Técnica

Como já foi dito, o filme começa devagar e é bastante frio. Mas o é para fazer a trama se construir, mais do que na tela, dentro de você. Você é dragado para dentro da história através da montagem, da mixagem de som e, especialmente, pela escolha de movimentos de câmera do filme. A câmera é sempre estável: quando não em um tripé, ela está num trilho ou, no máximo, uma steadycam. A maneira de entrar em uma nova sequência é como se o espectador fosse um novo elemento de cena, sempre começando externo à locação e adentrando o recinto com cuidado, como se estivéssemos nas pontas dos pés, para não atrapalhar a ação, que acontece sem trilha musical, para reforçar o realismo (apesar do não-realismo do roteiro). O único momento em que a câmera se desestabiliza é na sequência final, com o intuito de mostrar o nervosismo em tela. Tudo no filme é em prol de construir uma tensão absoluta. Destaque para a sequência inicial, que nos deixa aflitos e parece despropositado, mas faz todo o sentido para o restante do filme.

Vale?

Agora que eu já estraguei suas expectativas, talvez você não tenha a visão correta do filme, mas deixo, já, a minha avaliação de que é, até o momento, o melhor filme que eu vi em 2018.

https://www.youtube.com/watch?v=G5aSH8QyCwE

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