Pense em um filme de quadrinhos que te leve a pensar além do texto e imagens em tela. Coloque nele todas as referências necessárias para que o espectador saiba com quem está lidando, adicione mais algumas referências para enriquecer a experiência dele e adicione camadas a uma personagem já muito profunda, mas que carecia das motivações, não para fazer o que faz, mas para ser quem é. Qual o resultado da equação? Um espectador com uma cabeça explodida por um Coringa genial.
Lembrando que estamos publicando esta resenha quase uma semana antes da estreia do filme e o hype já gerado vem estragando a experiência de muita gente, então, se você quer algum spoiler do Coringa, terá que ler toda a crítica e passar do trailer para ver algumas perguntas e respostas, assim, protegendo aqueles que ainda preferem se surpreender com um filme no cinema.
Quando se faz um filme com o vilão mais icônico da história das histórias em quadrinhos, é impossível manter a expectativa baixa. Quando o filme foi anunciado, tínhamos o nome de Martin Scorcese ligado à produção e só isso já traria o produto para um novo patamar, menos de blockbuster de super heróis (ABSOLUTAMENTE NADA contra, mas sabemos que é puro entretenimento), mais cinemão, cerebral, de subtextos e questionamentos. Não dava para segurar o hype lá embaixo.
Mas o filme entregou. Coringa não é só mais um filme. Coringa pode ser (e já vem sendo) comparado a obras de arte, como Laranja Mecânica, Clube da Luta, Gangues de Nova Iorque. Claro que mais pela violência crua do que pelo texto – aliás, se você não gosta de VER gente sendo assassinada, NÃO VÁ ver Coringa -, mas o filme realmente entrega ao espectador algo que os filmes de super-heróis recentes não entregam: algo para pensar por semanas.
Porque já tem muita gente falando do assunto do filme e atacando, como se o filme fizesse alguma apologia ao comportamento incel do Coringa. Veja bem: o Coringa é um grande vilão. Enorme. O maior da história dos quadrinhos e nunca precisou estalar os dedos e dizimar meio universo pra isso. Porque, no campo da ficção, não é quanto poder que a personagem possui que importa, mas o significado, o subtexto, a mensagem, o que está por trás do que acontece. As metáforas, a loucura, todas as figuras de linguagem que o autor joga na obra e, quanto mais o leitor/espectador tem bagagem e referências, mais ele entende o que acontece na cabeça de cada uma das personagens da trama.
O antagonista. A perfeita nêmese. Aquilo que o Batman (não Bruce Wayne, Batman) nasceu pra combater. Aquilo que Batman SE TORNOU para eliminar: louco.
Caos x Ordem. Desordem x Obsessão. Loucura x… Loucura.
É inegável que o Coringa seja o inimigo perfeito do herói mais lunático dos quadrinhos.
Mas para por aí! Esta idolatria por Coringa e, mais recentemente, por sua ultra-jovem companheira/abusada Arlequina (incluindo o insano culto por este relacionamento abusivo, tóxico e doentio dos dois) é, realmente, algo que me preocupa na sociedade atual.
Apesar de grandes atores (Cezar Romero, JACK FUCKING NICHOLSON, Heath Ledger e, agora, o pré-idolatrado Joaquim Phoenix) terem dado vida e asas e emprestado grande carisma ao vilão, não há nada para ser “copiado” em NENHUMA das versões do vilão, que é um psicopata sem NENHUMA trava ou escrúpulo.
Portanto, se você se sente legitimado a reproduzir comportamento incel por causa de qualquer das encarnações televisivo-cinematográficas do Coringa, o problema não está nos filmes/séries. Está em você. Vá se tratar.
O filme não justifica as atitudes do Coringa, mas as trazem a uma relação de causa e efeito, claro, trazendo o espectador a entender os porquês e ver o exagero que há na personagem: o homem é doente!
Joaquin Phoenix está genial no papel e traz o Coringa para um patamar muito parecido com o que Heath Ledger deixou e que tentou ser estragado por Jared Leto, carregando nas costas, agora, um filme em que, obvio, é o protagonista. E o trabalho do diretor Todd Philips, apesar de subestimado pela repercussão, que fala muito mais de Phoenix, é primoroso, primeiro pela direção de atores e escolha dos planos (a câmera sempre se mexe e dá uma dinâmica bastante fluida para o filme, sem contar os cortes, que mantém o caminho do raciocínio sobre o Coringa sempre suave, sem tropeços), depois pela quantidade de informações postas em tela. É difícil, num filme sobre um comediante fracassado, fugir da solução fácil do texto, mas Phillips consegue usar os recursos audiovisuais para contar a história com uma surpreendente maestria, levando para um final que, parabéns aos roteiristas, subverte a noção de “happy ending”, tradição dos filmes não taxados para maiores de 18, deixando pontas soltas interessantes para o desenvolvimento da personagem em futuros filmes, mesmo entregando uma boa história fechada. As referências aos quadrinhos Cavaleiro Das Trevas, Asilo Arkham e Piada Mortal trazem um xodó para o filme que será difícil de desapegar e o lance da risada doentia do Coringa é uma bela cereja ao bolo deste filme que, provavelmente, será a melhor ida ao cinema deste ano para qualquer espectador nerd que se preze.
Se vale a pena ver o filme? Eu diria que é parada OBRIGATÓRIA para qualquer nerd! E um ótimo filme para quem quer se revoltar e pensar sobre a sociedade contemporânea e suas escolhas de líderes por motivos estapafúrdios.
Agora, se quiser evitar spoilers, pare por aqui. Depois do trailer, vem algumas pequenas observações (que não vão estragar sua experiência, mas que pode irritar um nerd mais bravinho).
Vamos lá.
Enrolando um pouco para dar espaço…
Lá vai!
A presença da família Wayne é algo notório no filme. A tentativa de relacionar o Coringa com Bruce não é tão legal, mas dá o fio da meada da narrativa secundária e ajuda a explicar a personagem, mas, se fosse outro filme qualquer, seria completamente desnecessária. Mas é o filme do Coringa, não é? E o final traz a grande ponta solta que, se for bem utilizada pela Warner, dará um bom The Batman para Robert Pattinson ser um coadjuvante pesado.